A vida virou entrave burocrático
Por Daniel Souza de Nonohay
Juiz do Trabalho
Recentemente, o Secretário Municipal de Serviços Urbanos de Porto Alegre qualificou como um “símbolo da burocracia brasileira” a preocupação com a segurança dos trabalhadores que realizavam o corte de grama no Arroio Dilúvio1.
A notícia é daquelas pelas quais os olhos passam indiferentes e seguem em frente. Contudo, há um sentido profundo nela, que deveria atrair a nossa atenção.
Qual é o sentido? Deixe-me primeiro contextualizar.
Para quem não conhece, o Arroio Dilúvio corta a cidade, funcionando como um esgoto ao céu aberto. Possui uma encosta inclinada, parcialmente coberta por vegetação. Caso alguém se descuide, pode rolar e cair. Se tiver sorte, cairá no canal, ficará encharcado com água contaminada e submetido ao eterno riso dos amigos. Se tiver azar, poderá dar com a cabeça em alguma pedra ou armação de concreto e viver com alguma lesão ou morrer.
Estamos construindo uma sociedade em que o valor da proteção à vida e à segurança de outras pessoas é apenas mais um número lançado no gráfico dos custos e mais algum tempo ressaltado em vermelho no campo dos entraves burocráticos.
Em um período de grande desemprego, de escalada da terceirização, de supressão de direitos trabalhistas e de prevalência de um discurso que nega ou relativiza os direitos humanos, perde-se a ideia de que há um homem trabalhando. Uma pessoa, na plenitude das suas peculiaridades, seus amores, qualidades e defeitos. Essa coisa única, que cada pessoa é. Fica somente a figura do “trabalhador”, aquela peça de produção que pode ser exposta aos riscos se for muito caro protegê-la ou se isso for retardar o andamento das obras. Trabalhadores são substituíveis. Homens são únicos.
Para utilizar o jargão econômico, a vida do trabalhador é uma commodity em viés de baixa. Não tem “mercado futuro”, pois a economia não se preocupa com o futuro de quem pode ser trocado imediatamente por outro com igual capacidade e custo menor. No máximo, o mercado se preocupará com a diminuição do lucro do setor de seguros ou com as despesas do sistema público de saúde.
Voltando à notícia, vejo que o secretário fundamentou o seu ponto de vista. Disse que “nunca houve registro de um operário cair enquanto cortava a grama. Nada justificava essa proibição”. Pois bem. Seguindo o seu raciocínio, vamos remover os cintos de segurança de carros que não bateram. Nessa lógica, o próximo passo, quem sabe, seria revogar a lei da gravidade.
Precisamos definitivamente respirar, refletir e parar de caminhar para esse local escuro onde todos viraremos apenas um número na coluna de custos de alguém.