Artigo: Rigor do CNJ está voltado para a primeira instância
Leia a seguir o texto publicado no site do Conjur em 15/05. O artigo é assinado por Renato Henry Sant’Anna (presidente da Anamatra), Adriano de Mesquita Dantas (presidente da Amatra 13/PB), e Fabrício Nicolau dos Santos Nogueira (presidente da Amatra 9/PR).
Instituído em 2004 pela Emenda Constitucional 45, o Conselho Nacional de Justiça já prestou relevantes serviços à sociedade e ao Poder Judiciário brasileiro, seja implantando a gestão e o planejamento estratégico, proibindo o nepotismo, regulamentando os critérios objetivos para aferição nas promoções por merecimento, reconhecendo a simetria entre magistratura e Ministério Público ou também apurando e punindo os abusos, excessos e desvios funcionais de magistrados e servidores.
Não obstante os avanços e as conquistas, a atuação do CNJ não é exitosa em todas as temáticas, sendo bastante modesta quando se trata da defesa da autonomia e independência do Poder Judiciário (artigos 2º, 37, 60, parágrafo 4º, III, 85, II e VII, da CRFB/1988) e do cumprimento do Estatuto da Magistratura.
Ora, como órgão de cúpula da gestão do Poder Judiciário, responsável pelo controle da atuação administrativa e financeira de todos os tribunais, o Conselho Nacional de Justiça não pode inverter a lógica da administração pública, ignorando a presunção de legalidade e legitimidade dos atos administrativos. A presunção, vale destacar, deve ser sempre pela boa-fé objetiva dos administradores dos tribunais.
Essa, no entanto, não é a lógica adotada pelo CNJ, que tem optado pela suspensão “cautelar” de praticamente todos os atos e normas administrativas questionadas. Ou seja, a partir de qualquer denúncia ou alegação de irregularidade afasta-se, de plano, a presunção de legalidade e legitimidade dos atos e normas dos tribunais, pondo em dúvida perante a sociedade a honra, o nome e a honestidade dos gestores e a própria credibilidade da gestão do Poder Judiciário.
No que diz respeito ao cumprimento do Estatuto da Magistratura, que envolve a efetivação de direitos e observância das prerrogativas da magistratura, a situação é ainda pior. Garantias fundamentais são solenemente ignoradas, a exemplo da irredutibilidade de subsídio (artigo 95, III, da CRFB/1988 e artigo 32 da Loman), da revisão anual do subsídio (artigo 37, X, da CRFB/1988) e da isonomia e unidade orgânica e remuneratória, inerentes ao próprio caráter nacional do Poder Judiciário (ADI 3.367 e MC-ADIn n. 3854-1, STF).
Tudo isso tem servido para chancelar distinções não previstas na CRFB/1988 nem na Loman, gerado uma segregação na magistratura e comprometendo, de forma flagrante, a unidade do Poder Judiciário nacional.
Esse apartheid fica evidente em temas como metas, produção, segurança, direitos e vantagens, cujos critérios variam bastante a depender do ramo do Poder Judiciário ou da instância dos magistrados envolvidos.
Ao instituir as polêmicas metas e implementar o controle da produção, o Conselho Nacional de Justiça voltou praticamente todas as suas forças e o seu rigor disciplinar para a primeira instância, conferindo tratamento mais ameno aos tribunais, onde a estrutura e as condições de trabalho são reconhecidamente melhores.
Tanto é assim que o Corregedoria Nacional de Justiça pretende melhorar a prestação jurisdicional com o “Projeto Presença do Juiz na Comarca”, o qual prevê a designação de audiências de segunda a sexta-feira, além da realização de mutirões para antecipar audiências pendentes, como se a atividade do juiz se resumisse a realização de audiências e como se os problemas estivessem concentrados nas comarcas, e não nos tribunais.
Ora, o incremento nas pautas de audiências acarretará o acúmulo e atraso em atividades igualmente relevantes, a exemplo dos despachos e julgamentos, numa clara demonstração de que os problemas do Poder Judiciário não serão resolvidos a partir de campanhas midiáticas e que apenas colocam em dúvida o trabalho árduo de milhares de juízes e juízas que dedicam a vida à atividade jurisdicional e à solução dos conflitos sociais, muitas vezes sem dispor sequer de estrutura de trabalho adequada.
Por outro lado, e apesar de o acúmulo de processo também ser uma constante nos tribunais e no próprio CNJ, não há registro de qualquer iniciativa voltada ao controle ou imposição de sessões diárias. No particular, o Conselho Nacional de Justiça tem um significativo acúmulo de processos na pauta e, mesmo assim, mantém sessões quinzenais, em uma inequívoca demonstração de que o tratamento conferido à primeira instância é substancialmente mais rígido e severo.
No quesito segurança a discriminação também é flagrante. Nas comarcas, em que o contato dos juízes com as partes é pessoal e diário, falta estrutura. Muitas unidades de primeira instância não possuem vigilantes nem equipamentos básicos, como armas e detectores de metais. Já nos tribunais superiores, em que os ministros praticamente não têm contato com as partes, apenas com os respectivos advogados, o aparato de segurança é adequado, contando com vigilantes armados e rígido controle de acesso.
Quando o assunto é direitos e vantagens da magistratura, a situação fica ainda mais grave e discrepante, valendo a máxima aos tribunais superiores tudo, aos juízes e desembargadores os rigores da Loman.
No particular, o Conselho Nacional de Justiça suspendeu diversos atos e normas que pretendiam apenas regulamentar e efetivar direitos e vantagens da magistratura, sem qualquer “cautela” com a isonomia, já que a atuação do órgão sempre tem deixado de fora os tribunais superiores, em relação aos quais, frise-se, o CNJ tem poder, mas parece não querer melindrar.
Tem sido assim, por exemplo, com o pagamento do auxílio-alimentação e com a ajuda de custo para moradia.
Em reiteradas decisões o Conselho Nacional de Justiça obstou o pagamento do retroativo do auxílio-alimentação aos juízes e desembargadores, nada fazendo em relação aos ministros dos tribunais superiores que já receberam o passivo integralmente há bastante tempo. O mais curioso, no particular, é que não há qualquer discussão sobre a legalidade do benefício, que continua sendo pago mensalmente em razão da simetria constitucional entre as carreiras da magistratura e do Ministério Público. Questiona-se, apenas, o pagamento das parcelas vencidas, o que parecia uma decorrência lógica e natural diante da legalidade do benefício.
Outro direito que tem beneficiado apenas parcela da magistratura é o de usar residência oficial ou de receber ajuda de custo para moradia. A Loman reconhece e confere — expressamente — aos magistrados o direito à moradia em residência oficial, constituindo dever do Estado colocá-las à disposição dos juízes nas localidades onde esses exercem suas funções. A ajuda de custo para moradia, portanto, só é devida aos magistrados lotados em localidades que não ofereçam residência oficial (artigo 65, II, da Loman).
O CNJ, no particular, suspendeu — sem qualquer amparo legal — as normas administrativas que estabeleceram o valor da ajuda de custo para moradia no âmbito de alguns Tribunais Regionais do Trabalho, mantendo intactas e em plena vigência as dos tribunais superiores, a exemplo do Tribunal Superior do Trabalho (Resoluções Administrativas 1.151/2006 e 1.341/2009) e do Superior Tribunal de Justiça (Ata da Reunião de Conselho de Administração de 29 de maio de 2003 e Resolução STJ 9/2008).
A ajuda de custo para moradia no âmbito dos Tribunais Superiores é paga há bastante tempo e, até hoje, não se tem notícia de qualquer questionamento por parte do CNJ, sendo, pois, de se presumir a sua legalidade. Do contrário, ou seja, caso houvesse alguma irregularidade ou ilegalidade em tais pagamentos pelas cortes superiores, o Conselho Nacional de Justiça certamente já teria adotado, inclusive de ofício, as providências cabíveis e necessárias.
Nesse contexto, e sem qualquer manifestação contrária do CNJ ao reconhecimento pelos tribunais superiores do direito dos ministros à percepção de uma ajuda de custo moradia enquanto não for fornecida residência oficial, em caráter substitutivo e indenizado, fica evidenciado que a norma contida no artigo 65, II, da Loman é autoaplicável a todos os magistrados.
Assim, e na mesma linha, idêntico tratamento deve ser conferido pelo CNJ a todos os demais tribunais do Brasil, sejam eles Tribunais Regionais do Trabalho, Tribunais Regionais Federais ou Tribunais de Justiça, pois não há norma especial ou específica para os tribunais superiores.
Inclusive é pertinente destacar que, além dos tribunais superiores, diversos Tribunais de Justiça pagam aos seus membros a ajuda de custo para moradia quando não disponibilizam as residências oficiais, fato também não reprovado pelo Conselho Nacional de Justiça.
Portanto, se é disponibilizada residência oficial ou paga ajuda de custo para moradia dos ministros, mesmo tratamento deve ser conferido aos demais magistrados de primeira e seguda instância, na medida em que todos são — igualmente — ocupantes de cargos vitalícios e submetidos aos mesmos ônus e bônus, inclusive o de residirem na localidade em que exercem a jurisdição, seja em Brasília (DF) ou no interior do Paraná (9ª Região), da Paraíba (13ª Região) ou de São Paulo (15ª Região).
Todos os magistrados (do juiz substituto ao ministro) são detentores das mesmas garantias, vedações, prerrogativas e direitos e estão submetidos à Constituição e à Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que não estabelecem qualquer distinção para o gozo dos direitos previstos no artigo 65. Trata-se, como já exposto, da unidade orgânica do Poder Judiciário, estabelecida pela Constituição e reconhecida expressamente pelo Supremo Tribunal Federal.
Qualquer entendimento em sentido contrário apenas contribuirá para a consolidação do apartheid da Magistratura Nacional em razão da violação do princípio da isonomia e da quebra da unicidade do regime orgânico e do caráter nacional do Poder Judiciário.
Com isso, admitindo-se por argumentação que o pagamento da ajuda de custo para moradia aos juízes e desembargadores do Trabalho revela-se temerário enquanto não se tiver certeza sobre a viabilidade e legalidade de tal benefício, a única conclusão lógica e racional é que a concessão de residência oficial ou o pagamento da ajuda de custo aos ministros dos tribunais superiores também é temerária e de legalidade incerta ou duvidosa.
Se o pagamento da ajuda de custo para moradia é temerário, inviável ou ilegal, o é para todos, inclusive para os ministros. Entretanto, como a concessão de residência oficial ou, subsidiariamente, o pagamento da ajuda de custo para moradia para todos os magistrados tem amparo legal (artigo 65, II, da Loman), a providência que deveria ser tomada pelo Conselho Nacional de Justiça era, na verdade, a regulamentação uniforme para todos os tribunais do Brasil.
Do contrário, ou seja, a prevalecer entendimentos que proporcionem — sem qualquer amparo legal — tratamento diferenciado aos ministros, restará institucionalizado o cinismo institucional.
É, pois, inaceitável o recebimento de determinadas vantagens apenas por parte dos integrantes do Poder Judiciário. Por outro lado, também é inaceitável a disparidade de valores, percentuais ou critérios de quantificação das mesmas.
A existência de leis de organização judiciária distintas nos diversos estados da Federação e até mesmo a própria regulamentação promovida pelos tribunais superiores cria, todavia, variadas hipóteses fáticas para a concessão das vantagens, o que vem causando injustificada diferenciação entre os vários ramos do Judiciário, havendo, inclusive, segmentos desse Poder, como a Justiça do Trabalho de 1º e 2º graus, onde várias delas não são pagas a pretexto algum.
Fica claro, a partir dos exemplos dados acima, que o Conselho Nacional de Justiça precisa rever suas decisões e forma de atuação, passando a zelar pela isonomia e unidade orgânica e remuneratória da magistratura, decorrência lógica e natural do próprio caráter nacional do Poder Judiciário, assegurando igualdade de tratamento, direitos e vantagens a todos os magistrados brasileiros, independentemente do ramo ou instância.
Se o CNJ e seus membros pretendem seguir na escalada de credibilidade junto à sociedade e à própria magistratura é necessário que passe a usar os mesmos critérios para analisar direitos e deveres de todos os magistrados, do primeiro grau aos tribunais superiores.
Adriano de Mesquita Dantas é presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho da 13ª Região – Amatra 13 (PB).
Renato Henry Sant’Anna é presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Traballho – Anamatra.
Fabrício Nicolau dos Santos Nogueira é presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho da 9ª Região — Amatra 9 (PR).
Revista Consultor Jurídico, 15 de maio de 2013