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ARTIGO: SORTE E LUTA, SEM PERDER O FOCO E A DOÇURA

Por Cláudia Elisandra de Freitas Carpenedo
Juíza do Trabalho e representante da Coordenadoria dos Juízes Substitutos da AMATRA IV

“Nunca esqueci o conselho que recebi da professora do ensino fundamental: Sempre vai ter alguém para desmerecer o teu esforço e as tuas conquistas, não só agora, mas por toda a vida, mas isso não pode ser o motivo de deixar de buscar o que queres”.

É difícil, admito, viver em condição de pobreza e achar forças e armas para lutar por um futuro melhor. Infância pobre em pequena cidade do interior, então, é quase um ímã ao ostracismo e à resignação com uma situação de vida desfavorável, quando isso já não ocorre pela absoluta falta de oportunidades.

Desde muito cedo, cedo mesmo, lá pelos 5 ou 6 anos, já tinha uma inquietude e um inconformismo com a minha situação de vida, muito graças ao incentivo da minha mãe, professora, e dos meus tios, vendedores de livros infantis que sempre me presenteavam com um exemplar e, com isso, despertaram em mim o amor pelo estudo e pela leitura. Para mim, felicidade e realização eram sinônimos de melhora de condição de vida a partir do estudo.

Estudei as primeiras séries do ensino fundamental em uma grande escola pública localizada no bairro pobre onde eu vivia. Às vezes me sentia mal ao ver que muitos alunos vivenciavam situação mais penosa que a minha, já que eu, embora pobre, sempre tive roupas para vestir, uma casa para morar e comida na mesa, sonhos de consumo para muitas crianças da escola, que vestiam trapos e esperavam ansiosas a hora da merenda.

Contudo, apesar da pobreza do ambiente e das dificuldades enfrentadas pela escola por conta da falta de estrutura, tive a sorte de ter professoras maternais e dedicadas, que sempre se dispunham a ir comigo além do básico do ensino, o que também me levou a, quando pequena, utilizar o estudo para auxiliar outros, como alguns colegas com maior dificuldade nas lições das matérias mais complexas, e também para alfabetizar minha irmã com quatro anos para que conseguisse ler sozinha seus livrinhos de história.

Só que, quando se vive em situação de vulnerabilidade social, as maiores forças são as que te puxam para baixo, não as que te empurram para cima, e é difícil manter o foco, ainda mais sendo criança. Ainda na segunda série, com sete anos apenas, após ser elogiada em classe pela nota de uma prova e enquanto voltava para casa, fui abordada na saída da escola por um grupo de meninas, algumas colegas de turma e, após duras ameaças verbais pelo simples fato de eu ter tirado boa nota e receber elogios não direcionados também a elas, o que as deixava “mal” perante a professora, fui atacada aos tapas, socos e puxões de cabelo.

Não tive grandes cicatrizes físicas, mas aquela abordagem ficou presa em algum lugar da memória e da alma, justamente porque aquele ato me trouxe grande aflição. O que as teria motivado a tentar frear minha ambição na pancada?
Minha conclusão, equivocadamente, foi a de que “eu estava errada” e que minha ambição por uma vida melhor poderia na realidade atrapalhar minha vida, a construção de amizades, e que eu deveria aceitar minha realidade de privações.

Mas, ainda muito pequena, tive que tentar desconstruir minha conclusão equivocada ,e apreender o que de fato significara aquela agressão. Isso sem auxílio da minha mãe, que se limitou a prestar queixa na escola, e sem auxílio da escola, que permaneceu inerte. Algo que realmente me ajudou no processo de entendimento foi o conselho da professora, que, com sua recorrente amabilidade, me disse de canto: “sempre vai ter alguém para desmerecer o teu esforço e as tuas conquistas, não só agora, mas por toda a vida, e isso não pode ser o motivo de deixar de buscar o que queres. Existem mais pessoas para te colocar para baixo do que para cima. Não deixe de manter o foco e a disciplina, mas sem perder a doçura!”.

Com esforço, meus pais me colocaram em uma boa escola particular de Santa Rosa na quinta série. Nesta escola, após alguma dificuldade por conta do ensino mais avançado do que o da escola pública, consegui fazer amizades e obter o apreço dos professores, embora nunca sem escapar do famoso bullying contra os “CDFs”, que sempre me atormentou. A escola costumava fazer seu próprio bullying ao me chamar no meio da aula, e mais uns dois ou três alunos, para periodicamente entregar o bilhete de atraso no pagamento das mensalidades, sob os olhares desdenhosos de alguns e piedosos de outros. A muito custo meus pais, sobretudo minha mãe, conseguiam pagar as mensalidades e garantir a matrícula ao final do ano usando o 13º salário e a gratificação de férias. Ainda assim, cursei o colégio sempre tirando boas notas.

A faculdade já foi outro desafio. Meu sonho era cursar medicina, mas minha mãe sempre deixou claro que a minha única opção para cursar o ensino superior era tentar o vestibular para uma universidade pública, já que ela não teria condições financeiras de pagar a mensalidade de faculdade particular. Sequer condições de me manter em outra cidade ela teria, já que inexistia universidade pública na região onde eu morava. O isolamento do interior, da nossa classe social, e a falta de análise das perspectivas me cegaram para outras possibilidades, como pleitear uma bolsa de estudos. Mas, quando recebi o convite de uma querida madrinha (minha tia avó) para residir em Porto Alegre com ela, após pedido da minha avó, a fim de tentar o tão sonhado vestibular para medicina na UFRGS, respirei aliviada.

Passar no vestibular, ao contrário do que eu, interiorana e sem nenhuma ideia do alto nível dos candidatos de Porto Alegre, imaginava, não seria tão fácil. O primeiro foi um fracasso total. Para o segundo, me dediquei ainda mais aos livros e ao cursinho (pago pela minha madrinha com meia bolsa). Contudo, durante aquele ano (1998, eu com dezessete anos) e após muita insistência da minha madrinha e familiares, fiz, sem compromisso, o concurso para servidor do TRT, um desvio completo dos meus planos. Ao estudar para o concurso comecei a pegar gosto pela área do direito e aos poucos fui amadurecendo a ideia de abandonar a medicina, inclusive pela questão financeira sempre latente, já que o direito me permitiria trabalhar de imediato. Passei no vestibular da UFRGS para Direito mas não pude assumir o cargo de atendente judiciário do TRT (uma das nomenclaturas do cargo de técnico judiciário à época) por conta da idade.

O passo seguinte, para o trabalho no Tribunal como servidora e depois como magistrada, veio a partir do amor que fui adquirindo pelo Direito, especialmente pelo Direito do Trabalho, e foi apenas sequência do esforço ao qual já estava acostumada.

Quando rememoro algumas escolhas (que nem pareceram escolhas), vejo como o Direito me encontrou, não o contrário. A ambição pela melhora da condição de vida, a necessidade de cursar o ensino superior em universidade pública e de trabalhar concomitantemente, poderiam ser facilmente interpretadas no sentido de que o Direito foi uma necessidade, nunca uma escolha, e talvez me causasse infelicidade. Mas não, sempre tive a vontade de buscar realização profissional sem esquecer o lado pessoal de amar o que se faz. Nisso, o Direito, e mais, a magistratura do trabalho, me trazem realização diária, de buscar não apenas a minha paz, mas a de outros, com serenidade e firmeza.

Nunca me esqueci do conselho da professora da escola pública e minhas lutas se seguiram, sempre com muito foco. Nem sempre consegui manter a doçura, do que me arrependo hoje, mas sempre que posso tento ao menos recuperar parte da Cláudia de antigamente.
Para quem precisa de incentivo, desejo isso: sorte e luta, sem perder o foco e a doçura.
Sem arrependimentos, sou realizada.

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