DIA DA JUSTIÇA: SER OU NÃO SER JUIZ
Rodrigo Trindade *
Em 08 de dezembro comemoramos o Dia da Justiça e é possível que o de 2016 seja o mais dramático dessa quadra histórica. Em poucos momentos da vida nacional vivenciamos tamanhos ataques aos órgãos investidos de poderes para cumprir e fazer cumprir as promessas constitucionais de justiça.
Nos últimos anos, é inegável o crescimento da percepção popular de importância dos órgãos do sistema nacional de justiça – especialmente na repressão à corrupção e ao abuso do poder econômico. Os êxitos dos combates a malfeitos históricos não passam desapercebidos e vêm acompanhados de fortes e infames reações.
Jurisdicionando e lecionando há alguns anos, tenho sentido que nem sempre encontramos, mesmo nos operadores do Direito, precisa percepção do trabalho – e dos dramas cotidianos – da magistratura.
No lugar dos tradicionais dez, pensei em onze pontos pretensiosamente esclarecedores.
1. Não é moleza
Sim, é difícil ingressar nos quadros dos tribunais, menos de 1% dos candidatos chegam à aprovação e os critérios são totalmente impessoais. Simplesmente pretende-se escolher os melhores e, enquanto não inventarem método mais efetivo, é a partir de um processo de seleção rigoroso de conhecimento e esforço que serão descobertos.
Pense bem: se um dia sua liberdade, honra e patrimônio tiverem de ser decididos por um mortal, vai querer que seja um indeciso que “deu uma estudadinha de véspera”? Não, vai esperar alguém realmente bem preparado. Por isso, juízes e juízas são pessoas que dedicaram anos de estudo, preparação e privações à implementação de uma vocação. E fazem o que podem para vivenciá-la da melhor forma.
2. A carreira é dura e tem privações
Atualmente, o tempo médio de permanência como juiz substituto no Judiciário da União é de onze anos, e tende a crescer. É nesse período em que o jovem magistrado costuma pipocar de comarca em comarca.
Não é incomum ter de atuar em diversas varas numa semana, ou passar a noite dormindo no ônibus para fazer audiências no dia seguinte. Depois, é carregar os processos para casa, trabalhar neles no fim de semana e aguardar a próxima e surpreendente designação.
Que companheira(o), família e amigos entendam suas ausências. E não se espante se o seu cachorro não reconhecer você na sexta à noite e lhe morder a canela.
3. Keep walking
Poucos admitem, mas depois da posse, a vontade que dá é fazer uma grande pira cerimonial e imolar todos os manuais, apostilas e resumos. Ah, se fosse possível…
Magistratura é como a vida dos tubarões: parou de nadar, morreu!
Convém manter o material de estudo e seguir atento às novidades editoriais e congressos porque o Direito não para de avançar. E o estudo permanente não é apenas com velhos e novos livros: juiz tem obrigação legal de frequência e aproveitamento em atividades de formação continuada nas Escolas Judiciais.
4. Não há glamour
Juiz só usa toga se quiser, e a maioria dispensa – com todo respeito, eu acho ridículo homem usar vestido preto com babados brancos e uns pompons tipo puxador de cortina pendurados. E acho que as juízas conseguem pensar em cortes bem mais elegantes.
Há poucas coisas mais ridículas e antiéticas que juiz querendo dar carteirada, achar-se melhor que qualquer um pelo cargo que ocupa. Respeito é esperado com a instituição Judiciário. Para a pessoa juiz não tem download rápido, não consta nos manuais, nem vem embutido na carteira funcional. Vai depender é da qualidade da atuação, seriedade, e compreensão das demandas da comunidade. E isso só se conquista com tempo e dedicação.
5. Juiz não tem horário de expediente
Todo aquele estudo bonito sobre limitação de jornada, respeito aos intervalos e direito ao lazer nem sempre é aplicado em casa. Primeiro, porque se leva trabalho para o lar, muito trabalho, seja no porta malas do carro, como na pendrive do bolso.
Na hora de escolher o apartamento, a peça indispensável na residência de todo juiz ou juíza é o escritório com prateleiras reforçadas.
Isso porque se é juiz à noite, durante o engarrafamento, nos finais de semana e nas férias. Mesmo que vá para uma ilha isolada da Polinésia, segue sendo juiz. E aqui, não estou falando de jurisdição. Por mais que se esforce, é difícil não carregar na cabeça as dezenas de dúvidas de julgamentos e encaminhamentos.
Às vezes, é durante o banho que a resposta vem, no meio da sequência de abdominais ou simplesmente ralando sobre os livros e sites de jurisprudência.
6. Metas, metas e mais metas
Alguém realmente acha que ser juiz é não ter chefe, governar-se em tudo, prestar contas apenas ao próprio nariz? Que bom seria.
Juiz é cobrado por todo mundo. Metas da Corregedoria e da Presidência do Estadual/Regional, metas do tribunal de Brasília, meta do conselho setorial, metas do CNJ. Há metas para tudo, e tem de cumpri-las.
Mas há outra cobrança, ainda mais intensa e permanente: a cobrança da sociedade. Serenidade, seriedade, cordialidade, retidão, honestidade absoluta. Todos vão olhar para o magistrado esperando ver apenas isso, porque tem moral para impor a lei aquele que a cumpre sem concessões.
7. É tudo com você
Por mais que gente mal intencionada repita, delegação geral e irrestrita de trabalho aos assessores não passa de fábula de mau gosto. No fim das contas, o dono da caneta é o único responsável, e é assim mesmo que tem de ser.
Há muito para conferir, analisar e assinar. E quando digo “muito”, é muuuuuuito, mesmo! Um dia normal de trabalho obriga a (tentar) dividir o tempo na análise prévia da pauta, confecção e revisão de sentenças e despachos, administração da unidade judiciária, recebimento de advogados e condução de longas pautas de audiências.
E tudo muito rápido, porque tem de cumprir as metas, lembra?
8. Não há privilégios
Metade do ano viajando? Carro oficial? Passaporte diplomático? Isso tudo é lenda urbana.
Há diversos cargos públicos com remunerações melhores e trabalhos bem mais simples. E com o conhecimento acumulado para as provas do concurso, não é difícil conseguir posição financeiramente confortável num grande e lucrativo escritório de advocacia.
9. Cada dia uma agonia
Num mundo ideal, as decisões estão prontas, são simples e facilmente corrigíveis. E realmente tem quem acredite que julgar se resume a operações automatizadas de recorta-e-cola. Se não ficou bem, só precisaria achar outro modelo.
A verdade é que decisões de risco são tomadas a cada turno, e ninguém perdoa erros judiciais.
Diariamente, há dezenas de pessoas tentando induzir o juiz em erros e, na maior parte das vezes, ele não tem tempo para grandes reflexões. Revisão de fatos, análise e identificação do direito aplicável, tudo tem de sair rápido, preciso e seguro. Se for na audiência, há de estar na ponta da língua, sem espaço para titubeações.
A atividade jurisdicional é como vida de goleiro: basta um segundo de desatenção para prejuízos às vezes irreparáveis. O juiz pode ter passado anos com boas decisões, mas é só fazer a escolha errada em situação grave que terá de conviver com essa marca.
10. Acostume-se a desagradar
Um colega tem frase que diz muito: “juiz não serve para covarde e covarde não serve para juiz”. Tem medo de desagradar aos outros? Receio de contrariar interesses poderosos? Insegurança para tomar decisões que causem graves consequências a um, em benefício de outro? Se a resposta é sim, o melhor é cogitar profissões mais tranquilas porque isso acontece dezenas de vezes num dia fácil de trabalho.
Isso sem falar nos riscos que correm todos aqueles que contrariam interesses poderosos. Não é à toa que porte de arma de fogo é prerrogativa da magistratura. Sei de uma dezena de colegas que sofreram ameaças de vida. E nenhum se exonerou.
11. Juiz não é burocrata
Dizer não ao Ctrl+C, Ctrl+V. Diariamente, o juiz tem de repetir para si que não é um burocrata.
Como é sedutor o canto da reprodução automática da súmula, da jurisprudência consolidada, do recorta-e-cola! O julgamento autômato, descriterioso, é atitude criminosa e desonra à profissão. É preciso atenção a cada detalhe, à avaliação crítica da tradição, à análise da contemporaneidade e à força jurígena dos avanços sociais.
Talvez os processos não devessem ter números, só o nome das partes porque, afinal, eles são isso: as vidas das pessoas.
Então, mesmo com esses onze pontos, ser juiz é ruim? Não. Apesar de todas as dificuldades, é uma grande missão. Poucas coisas podem ser mais honrosas que ter a delegação da comunidade para encarnar defesa, interpretação e efetivação de seus mais altos valores de convivência.
Dizer o justo, recompor prejuízos, reprovar a maldade e a mesquinharia humana, tudo delegado a uma pessoa. Chegar em casa à noite – ainda que com o carro lotado de processos e o cachorro mordendo a canela – e perceber que realmente se conseguiu ficar pelo menos próximo a isso… olha, talvez possa mostrar que o Direito seja bem mais que um simples jogo de sombras.
(*) Presidente da Amatra IV