Notícias

EUA: UM “PARAÍSO” EMPRESARIAL SEM CONDENAÇÕES TRABALHISTAS??

Para aqueles que efusivamente apontam os EUA como um “paraíso” empresarial onde supostamente inexistiria o risco de condenações trabalhistas, o noticiário internacional teimosamente os tende a desmentir.

O exemplo mais recente é o de uma ex-funcionária de um hotel na Flórida que receberá cerca de R$ 1,9 milhões após ser obrigada a trabalhar aos domingos. Para que se entenda a questão, uma lei federal, o Civil Rights Act, em seu título VII, seção 703 proíbe práticas laborais discriminatórias, inclusive por motivo de religião. Por outro lado, a seção 701(j) estabelece que o termo religião “inclui todos os aspectos da observância religiosa, assim como a crença, salvo se o empregador demonstrar que não é capaz de acomodar razoavelmente (reasonably accommodate) a observância ou prática religiosa do empregado ou candidato a empregado sem ônus excessivo (undue hardship) à condução dos negócios do empregador” (https://www.law.cornell.edu/uscode/text/42/2000e). Se o ônus for mínimo para as operações, sanável, por exemplo, mediante escala de trabalho flexível, trocas voluntárias de turnos, redistribuição de tarefas ou modificação de políticas da empresa, o empregador está obrigado a adotar tais ajustes (https://www.eeoc.gov/laws/types/religion.cfm).

No caso noticiado, a autora era Marie Jean Pierre, que lavava louça no Hotel Conrad Miami, do grupo Hilton. Foi contratada em 2006, comunicando ao empregador que não poderia trabalhar aos domingos por motivos religiosos, o que foi observado até 2015, quando passou a ser colocada nas escalas de domingo. Mesmo após carta explicativa do pastor de sua congregação, a empresa não recuou e, em 2016, Marie foi demitida com alegações de “má-conduta, negligência e faltas injustificadas”. O júri considerou que houve discriminação religiosa e falha no dever de acomodar razoavelmente a situação, arbitrando a indenização em 21 milhões de dólares. Esclarece o advogado da autora, entretanto, que em razão de tetos indenizatórios para as cortes federais, haveria uma limitação a 300 mil dólares em danos punitivos (punitive damages se aplicam quando não há mero inadimplemento, mas sim má-fé), 500 mil dólares em danos morais (emotional distress) e 35 mil dólares em salários atrasados ou retroativos (back wages), ainda assim resultando a ação em um valor líquido de 500 mil dólares, após todos os honorários, custas e descontos legais (https://www.sun-sentinel.com/business/fl-bz-miami-dishwasher-jury-award-20190116-story.html).

De tal exemplo, em que pese possamos nos chocar com o valor inicialmente arbitrado pelo júri (que desconhecia os limites indenizatórios, como informa o advogado da autora), duas lições principais podemos extrair, pertinentes às comparações incompletas que tanto se multiplicam nas redes sociais:
(1) As condenações trabalhistas e os custos judiciais e de honorários advocatícios nos EUA possuem um valor MUITO elevado (este não é um caso isolado), o que inibe/amedronta/desestimula o descumprimento da lei, e por consequência é uma das explicações para o menor número de ações trabalhistas nos EUA (fato que também se alardeia na mídia e redes sociais). Assim, em razão do elevadíssimo valor, temos nos EUA grande cumprimento espontâneo das regras, e um menor número de ações, enquanto que aqui são raras as condenações elevadas, havendo empregadores que não temem fazer concorrência desleal contra os empresários sérios, descumprindo direitos básicos (basta ver que quase metade das ações trabalhistas se dão pelo inadimplemento da rescisão contratual), o que ajuda a explicar o maior número de lides trabalhistas.
(2) O exemplo acima, mais uma vez, demonstra que os EUA não são o “Jardim do Éden” de desregulamentação e baixo custo trabalhista, como falsamente propagam. Os departamentos de Compliance e Recursos Humanos das empresas americanas são bem estruturados e amparados por times de advogados trabalhistas especializados – estrutura que custa caro – para organizar o cumprimento empresarial de todas as exigências da lei, bem como aquelas veiculadas em um emaranhado de precedentes judiciais e de regras das agências reguladoras administrativas (Equal Employment Opportunity Commission – EEOC, National Labor Relations Board – NLRB, Occupational Safety and Health Administration – OSHA, etc). Um Estado Democrático de Direito se constrói com a efetividade da punição ao descumprimento das leis e os EUA, particularmente, aplicam as suas “a ferro e fogo”. Logo, embora a legislação trabalhista americana seja sui generis, diferente da nossa, que segue os padrões da OIT e da maioria dos países (ver “Direito do Trabalho no Brasil e nos EUA – Não Comparemos Alhos Com Bugalhos”, disponível e.g. em https://www.anamatra.org.br/artigos/27486-direito-do-trabalho-no-brasil-e-nos-eua-nao-comparemos-alhos-com-bugalhos), nem por isso tal legislação é menos complexa ou onerosa!

Assim, para quem aponta os EUA como modelo a ser atingido, um “paraíso” quanto ao baixo custo trabalhista e simplicidade, trata-se de ingenuidade ou ignorância, ou ambos. Cuidado com Fake News!

Autor: Cesar Zucatti Pritsch, Juiz do Trabalho no TRT4 e Juris Doctor pela Universidade Internacional da Flórida/EUA.

Compartilhamento