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Mais que um diagnóstico, um mundo de possibilidades

Por Raquel Nenê Santos, Juíza do Trabalho
Coordenadora do Comitê Gestor de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade do TRT-RS

O autismo — ou Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), como é tecnicamente chamado — é uma condição de saúde caracterizada por déficit em três importantes áreas do desenvolvimento humano: interação social, comunicação e comportamento. Não há só um, mas muitos subtipos do transtorno. É tão abrangente que se usa o termo “espectro”, pelos vários níveis de comprometimento. É um dos mais intrigantes transtornos do desenvolvimento humano, que não vem acompanhado de características físicas, mas que afeta o comportamento.

Não é uma doença única, mas um espectro de condições neurobiológicas, sendo que gatilhos do ambiente podem provocar sobrecarga sensorial, rápida alteração de humor, crises de descontrole emocional e até mesmo dificuldade em compreender regras sociais.
Falo e propago sobre o autismo diariamente, pois hoje, uma em cada 45 pessoas (entre 3 e 18 anos), está diagnosticada com autismo. O autismo é mais frequente que HIV positivo, câncer e diabetes infantil somados. A ONU estima que 1 bilhão de pessoas no mundo têm algum tipo de deficiência, entre 7 bilhões e meio que somos todos nós.

João Henrique tinha 2 anos e 8 meses quando comecei a perceber que seu mundo estava se desconectando do meu, do nosso mundo…seus olhos não buscavam os meus como antes, seu sorriso, que antes me iluminava, já não brilhava tanto assim…parecia que alguma coisa estava faltando; que a nossa ponte estava se desfazendo e o João se distanciava em direção a um mundo que eu não conseguia entrar…

E quando o diagnóstico do Autismo se confirmou, nasceu também, em mim, o mundo completamente estranho das necessidades especiais.
Posso afirmar que quando recebi o diagnóstico do João, há mais de 10 anos, me vi jogada em um mar de desafios. Morando no interior do Estado, onde podia contar nos dedos de uma única mão o número de pessoas que sabiam o significado da palavra AUTISMO; carente de profissionais capacitados e terapias adaptadas ao sujeito; sem contar na falta de políticas públicas e educacionais voltadas para a inclusão. E enfrentar esse mar revolto e suas contracorrentes, era a única forma de seguir em frente…

Saí em busca de capacitação, para mim e para os profissionais que se dispuseram a aprender e trabalhar com meu filho; não desisti até conseguir fazer a escola entender que meu filho era capaz de aprender, mas para isso a escola deveria ser capaz de ensinar de forma diferente, sendo urgente a capacitação de seus profissionais; já cheguei a pensar duas vezes antes de voltar a algum local público, quando precisava me preocupar com as explicações sobre alguns comportamentos “esquisitos” do João Henrique.

Entretanto, muitos avanços tivemos nesses últimos anos. O mundo moderno, as redes sociais, o acesso à informação de forma globalizada e instantânea, foi um importante aliado na nossa luta para desbravar esse mundo pouco conhecido. Acompanhei a evolução de conceitos, Autismo, TEA, CID 10, CID 11. Em 2012, com a Lei 12.764 da Política Nacional de Proteção aos Direitos da Pessoa com TEA, o autista passou a ser considerado pessoa com deficiência para todos os fins legais, saindo da sombra e deixando de ser uma lacuna legal.

As escolas passaram de uma postura meramente assistencialista, para agentes responsáveis pela efetiva inclusão, com a aprovação, em 2008, da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, com a instituição de obrigações como estratégias didático-metodológicas em currículo adaptado, materiais estruturados e acompanhante individualizado. Os profissionais, atualmente, já dispõem de uma gama de treinamentos, cursos, especializações e capacitações na área, sem contar na vasta bibliografia disponível sobre o tema. Hoje é possível escolher aonde ir, o que aprender, com quem aprender, o que questionar, o que não pagar, a quem questionar.

Posso afirmar que não é fácil, mas não é impossível.

E todos esses avanços me impulsionam a buscar sempre mais, acreditar no potencial de cada um deles e me conduzem, cada vez mais, à certeza que o amanhã dependerá, cada vez mais, do que fizermos hoje!

João Henrique não é verbal, mas com o auxílio de profissionais que acreditaram e estiveram ao meu lado quando eu insistia em profetizar que meu filho, autista não verbal, poderia se comunicar, mesmo sem linguagem e, ainda, com o apoio das tecnologias assistivas de comunicação alternativa aumentativa, consegue atualmente expressar intenções e sentimentos, com redução das barreiras para sua existência de forma plena e feliz!

Assim, aprendi a ouvir sem que seja necessário nenhum som; aprendi a dar carinho sem esperar reciprocidade, mas sendo surpreendida a cada dia com gestos de afeto, com seu sorriso, com seu toque, os quais posso afirmar, nunca terão outra intenção que não a mais genuína demonstração de carinho. Aprendi a enxergar beleza onde ninguém vê coisa alguma. Aprendi a sorver conquistas a conta-gotas e, mesmo assim, comemorar sob os mais intensos festejos. Aprendi a traduzir esse mundo que pode ser tão desestruturante para ele.

Mas também aprendi que tenho muito a agradecer. Sou muito grata a cada pessoa especial que Deus colocou no meu caminho e no caminho do João Henrique, no decorrer desses anos.
Agradeço todos os profissionais, terapeutas, colegas do João Henrique, enfim, todos que com sua empatia, carinho e disposição, sempre se interessaram pelos assuntos que me movem e em algum momento auxiliaram a mim e ao meu filho.

Agradeço aos verdadeiros amigos e minha família, que mesmo sem entender direito esse universo chamado Autismo, sempre estiveram ao meu lado, pois sempre digo que o “como caminhar”, e o “até onde caminhar” depende, não apenas, do esforço e da vontade de cada um de nós, mas, sobretudo, da ajuda e apoio dos amigos e familiares que nos cercam, sendo esteio e sustentáculo nos momentos difíceis, nunca deixando faltar carinho, amor, sabedoria e força.

A todos aqueles profissionais, que com dedicação e competência trazem luz, alegrias e esperança às famílias azuis, meu muito obrigada e meu reconhecimento!

E agradeço ao meu filho! Nestes 13 anos de convívio, só consigo pensar no quanto crescemos, nós dois, em todo esse tempo. João Henrique, em tamanho, desenvolvimento, maturidade, compreensão, sem contar nas demonstrações de carinho e afeto que me enchem de paz e felicidade!

E eu cresço e me aperfeiçoo a cada dia, quando busco na vida o que ela tem de essencial; crescemos e me vejo mais forte na minha missão de estar ao seu lado, participando de suas conquistas e lutando pelos seus direitos.

Em razão de todas as experiências vivenciadas neste mundo fragmentado que se chama Autismo, pude entender que minha identidade é definida pelas batalhas que estou disposta a lutar, pois elas determinam minhas conquistas. Compreendi que não há permissão para parar, porque a alegria está na subida e que reorientar minhas expectativas é viver com mais significado, mais delicadeza, compaixão e empatia.

Acredito que todos os desafios e dores nos conduzem a um rumo e uma certeza: que o Autismo não é um diagnóstico com uma sentença; é um caminho e um mundo de incontáveis possibilidades! Transformar dor em ferramenta de aprendizado, em um exercício de esperança contínua é o que me faz acreditar que podemos ter um mundo em que não seja mais necessário lutar por espaços iguais; um mundo em que as leis serão aplicadas de forma voluntária; um mundo em que não existam barreiras a derrubar e que nesse mundo diferente, expressões como acessibilidade, aceitabilidade e inclusão social saiam dos discursos e invadam nosso dia a dia!

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