Reforma da Previdência é Mais um Capítulo da Triste Saga da Trabalhadora Brasileira
Por Gabriela Lenz de Lacerda, Juíza do Trabalho e Diretora de Assuntos da Cidadania da AMATRA IV
Senhora Brasileira entra na sala de audiência. Rosto cansado, aparência envelhecida. Não está nervosa. Parece habituada àquele ambiente das leis nada convidativo.
Pego a sua Carteira de Trabalho e logo descubro o porquê: os registros apontam uma sucessão de empresas prestadoras de serviço de limpeza, “clientes” da Justiça do Trabalho, pois encerraram as suas atividades e não pagaram nem mesmo a rescisão dos seus empregados.
Sra. Brasileira conta os dias para se aposentar. Sra. Brasileira está exausta.
Apesar da Constituição Federal prever uma jornada máxima de 8 horas diárias e 44 horas semanais, desde que os doutos operadores do direito passaram a admitir a figura do banco de horas, a sra. Brasileira nunca mais conseguiu prever a hora que ia chegar em casa. Trabalha 10, 11 horas por dia, compensa “quando dá” e ainda gasta pelo menos 1 hora por trajeto, já que o trânsito e o transporte público estão cada vez piores. Além do emprego formal, faz bicos para complementar a renda e, quando chega em casa, ainda tem que alimentar os filhos, lavar as roupas, limpar a casa.
Sra. Brasileira não pode se “dar ao luxo” de adoecer ou se acidentar. Sabe que precisa se sustentar e que toda sua família depende dela. Sabe que o patrão não quer empregada doente, que falta ao trabalho e cria problema com o tomador de serviços.
Às vezes, sra. Brasileira se sente triste. Sente um vazio no peito e passa meses sem vontade de sair da cama. Uma colega de serviço falou em depressão, mas sra. Brasileira sabe que isso é “doença de rico”. No fim das contas, está tão cansada e apática que não consegue nem mesmo reclamar de sua situação. Sra. Brasileira perdeu há muito o direito de se indignar.
Pego novamente a sua CTPS para registrar o término do contrato de trabalho – já que o empregador sumiu e não teve a dignidade nem mesmo de formalizar a rescisão. Descubro, espantada, que sra. Brasileira tem a minha idade. 33 anos. Aparência de pelo menos 10 anos a mais.
Percebo que já conhecia a sra. Brasileira. Encontro com ela na minha sala de audiência quase toda semana. E digo que ela não tem condições de trabalhar por mais cinco anos. Meia década para um trabalhador braçal é muito, muito tempo. Para uma trabalhadora, que vive em uma dupla jornada, é um tempo impensável.
Não por acaso se diz que quem defende a Reforma da Previdência, com o aumento da idade mínima para aposentadoria, “não costuma carregar sacos de cimento nas costas durante toda uma jornada de trabalho, cortar mais de 12 toneladas de cana de açúcar diariamente, queimar-se ao produzir carradas de carvão vegetal para abastecer siderúrgicas e limpar pastos ou colher frutas sob um sol escaldante”. E complemento dizendo que provavelmente delegue suas atividades domésticas a uma faxineira ou empregada. Desconhece, portanto, em absoluto a realidade de uma massa de trabalhadores brasileiros.
Qualquer alteração das regras de previdência deve considerar que os índices de acidente de trabalho no Brasil são obscenamente altos. E que se a sra. Brasileira trabalhar por mais cinco anos vai adoecer e se acidentar ainda mais, com a consequência óbvia de sobrecarga do Sistema Único de Saúde e do próprio INSS – mediante a concessão de benefícios por invalidez.
Também deve considerar que quando a sra. Brasileira atingir a maturidade, sem qualquer garantia de emprego[1], seguirá a sina dos trabalhadores braçais e será descartada, substituída por outra trabalhadora mais jovem, mais rápida e mais produtiva. Sem qualquer qualificação, ficará marginalizada, não conseguirá novos empregos e acabará perdendo sua condição de segurada da Previdência.
Por isso, antes de falarmos em retrocesso dos direitos previdenciários e em aumento indiscriminado da idade para a aposentadoria, é preciso enxergar a realidade da sra. Brasileira como ela é: muito diferente dos ambientes com ar condicionado da nossa Capital Federal.
[1] Apesar do inciso I do artigo 7º da Constituição prever, entre os direitos dos trabalhadores, a “relação de emprego protegida contra a despedida arbitrária ou sem justa causa”, quase trinta anos depois ainda não foi publicada lei complementar regulamentadora. Ainda que não encerrado o julgamento, a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal já votaram confirmando a validade da denúncia feita à Convenção 158 da OIT.
*Este texto foi originalmente publicado no site Justificando.