Valdete Souto Severo
Juíza do Trabalho Substitutita – 4ª Região
SUMÁRIO: 1. Os Princípios Processuais. Breve sobrevôo; 2. A prova no Direito do Trabalho; 2.1 Efetividade e segurança jurídica: inimigos ou aliados?; 2.2 A Proteção e o Processo do Trabalho; 3. A Súmula 338 do TST; 4. Um convite à reflexão; Referências Bibliográficas.
As normas processuais só têm razão de ser quando concebidas como meio para o atingimento de um direito material. A partir dessa afirmação desenvolveremos breve raciocínio sobre ônus da prova no âmbito do processo do trabalho, notadamente no que diz com a aplicação – ou não – da orientação vertida na Súmula 338 do TST.
O processo – tal como concebido atualmente – é fruto da era moderna. Com a superação do feudalismo e a ascensão da burguesia, a nova sociedade, centrada no capital e orientada pela ânsia por desenvolvimento científico, econômico e social, passa a duvidar dos conhecimentos até então adquiridos. Surgem as primeiras descobertas científicas#, fazendo com que o homem entenda necessária a prova dos fatos. Até então, o conhecimento era concebido a partir dos sentidos. O que se via, ouvia ou sentia era percebido como realidade. As descobertas científicas, porém, mostram ao homem uma realidade diversa. O telescópico revela a verdade de que não é o sol que gira em torno da terra, como até então acreditávamos. Inicia-se um período de crise que torna necessário repensar o modo como o ser humano se relaciona com a natureza.
Nesse ambiente, surge a necessidade de realizar processos nos quais o homem, a sós consigo mesmo, tenha elementos concretos que permitam verificar a realidade. O objetivo passa a ser descobrir como as coisas ocorrem. Não existem certezas, senão quando preenchidos determinados procedimentos pré-estabelecidos, que permitam o seu alcance. Essa revolução social e científica é sentida também no âmbito político. A necessidade de legitimar a burguesia e, ao mesmo tempo, garantir o poder do Rei, faz surgir uma teoria política em que o Poder Judiciário deve distanciar-se ao máximo dos fatos, reservando-se apenas à tarefa de declarar a vontade já contida na Lei#. Tal declaração é obtida mediante o uso de uma série de procedimentos pré-determinados (processo) ao final dos quais surgirá a VERDADE capaz de conferir a CERTEZA necessária à pacificação dos conflitos sociais. O direito é transformado em ciência.
É nesse período histórico que surgem as codificações, numa clara tentativa de amarrar a atuação judicial#. O capítulo destinado ao direito probatório, no código de processo civil, revela evidente preocupação com a observância de um roteiro específico, recheado de regras, capaz de revelar ao final a verdade contida na Lei #. No âmbito do direito do trabalho essa lógica é invertida. Destacam-se as regras de direito material e o processo assume lugar de mero instrumento#. Esse significativo avanço, porque mais intuitivo do que proposital, não implicou quebra do paradigma liberal, mas permitiu ao operador do direito do trabalho manejar o processo como modo de realização do direito material. Tanto assim que ainda hoje o direito processual comum busca avanços que vão ao encontro das regras postas na CLT há sessenta anos.
1. OS PRINCÍPIOS PROCESSUAIS – BREVE SOBREVÔO
Princípios são espécies de normas cujo conteúdo visa a orientar a aplicação das regras jurídicas em determinado contexto social e histórico. São frutos do pacto social firmado por determinado povo e representado, em última análise, por sua Constituição#. No âmbito do processo, nosso ordenamento jurídico é orientado pelo princípio dispositivo, identificado com a idéia de que o Juiz deve agir apenas no momento e na medida em que for provocado pelas partes. Tem caráter democrático inegável e se reveste de garantia constitucional. Entretanto, foi concebido dentro de um ideal iluminista que desconfia do Juiz e para ele reserva a função de mero oráculo da Lei#.
Em um Estado Democrático de Direito, esse princípio é de ser examinado a partir da idéia de que estando o processo à disposição das partes, para resolver seus conflitos, deve ser observada a paridade de armas e o equilíbrio saudável capaz de permitir o exercício do ato de julgar. Nesse sentido orienta-se a CLT, quando refere que o Juiz tem amplo poder de cautela, devendo diligenciar na produção da prova capaz de aproximá-lo dos fatos. Deve, inclusive, iniciar, de ofício, os atos executivos. Embora de maneira intuitiva, o que a CLT faz, em realidade, é subverter a lógica racionalista – ainda que de modo tímido – outorgando às regras processuais a função de meio para o atingimento da versão mais apropriada dos fatos. Com isso, não desrespeita o princípio dispositivo. Ao contrário, confere-lhe sua verdadeira dimensão.
Nesse aspecto, o princípio dispositivo é caracterizado pela premissa de que o Juiz tem o dever de atuar no processo utilizando-se do ordenamento jurídico vigente de sorte a conferir-lhe máxima eficácia#. É vertente desse princípio, o devido processo legal, representado pela ampla defesa e pelo contraditório, ambos examinados à luz da razão de ser do processo, qual seja, conferir eficácia à tutela jurisdicional de direitos, agindo com lealdade e boa-fé. Devem sempre ser avaliados sob o ponto de vista do direito material posto em causa e das técnicas processuais ofertadas pelo sistema, para resolver o litígio#. Vale dizer, ampla defesa não equivale à defesa sem limites ou temerária. Pelo contrário, o ordenamento jurídico veda expressamente a dedução de defesa temerária e o mal uso do tempo no processo#. Do mesmo modo, o contraditório se justifica na exata medida em que serve para a solução de um conflito de interesses.
Aliado ao princípio dispositivo, outros princípios gerais do processo também assumem relevância no âmbito do direito do trabalho. A oralidade determina menor formalidade e concentração nos atos processuais, atenuando os requisitos formais do processo.# O impulso oficial ou inquisitoriedade informa que ao Juiz cumpre determinar, de ofício, as medidas necessárias à efetivação do direito.# O livre convencimento fundamentado (livre investigação da prova e persuasão racional) tem relação direta com a independência e com a imparcialidade necessária para o exercício da jurisdição.# Traduz a liberdade que o Juiz possui para buscar a prova, devendo determinar a produção daquelas necessárias à instrução do processo#, avaliando-as livremente, para formar seu convencimento, desde que fundamente suas decisões#. Por fim, a impugnação especificada dos fatos, dispõe que o réu, na contestação, deve se manifestar precisamente sobre os fatos narrados na petição inicial, sob pena de presunção de veracidade do que é alegado na petição inicial#.
Para Ovídio Baptista, todos esses preceitos se resumem na idéia de necessidade da prova (o Juiz não se pode valer de seus conhecimentos pessoais) e de contradição da prova (contraditório ou bilateralidade da audiência). Ressalta que o ônus da prova simplifica-se na constatação de que os fatos alegados por cada uma das partes devem ser por elas demonstrados nos autos#. A síntese é precisa e encontra perfeita harmonia com o que disciplina o artigo 818 da CLT.
2. A PROVA NO DIREITO DO TRABALHO
Compreender o processo como instrumento implica mudar o olhar que dedicamos à prova. Os meios de prova servem à busca de significados, vale dizer, da versão apropriada dos fatos submetidos à apreciação judicial. Se isso é verdade, a prova deve ser produzida apenas e na medida em que necessária à solução do conflito.
É importante perceber a dificuldade que temos em aceitar essa premissa elementar. Tal dificuldade está retratada na aceitação da produção de provas evidentemente desnecessárias, ao argumento de que o processo será reexaminado em segundo ou terceiro graus de jurisdição. A necessidade de “produzir prova para o Tribunal” está assentada na idéia de desconfiança da sentença de primeiro grau. É fundada no procedimento, por tudo equivocado, de reexame da prova, pelo segundo grau de jurisdição, como se o litígio estivesse sendo submetido pela vez primeira à apreciação judicial. Em outras palavras, a ciência de que nossas decisões serão reexaminadas como se ainda não houvesse sentença nos autos gera uma atitude de precaução demasiada# por parte dos Juízes de primeira instância, cujas decisões acabam, muitas vezes, por se tornar mero degrau de passagem do processo#.
Ora, se confiamos em nossos juízes – constitucional e democraticamente selecionados para exercer seu mister – e temos uma legislação que confere à sentença a natureza de ato que resolve o processo, não é razoável admitir tenhamos de produzir prova desnecessária ao convencimento judicial. Note-se que a CLT evidencia, em mais de uma oportunidade, a idéia de que ao Juiz cabe dirigir o processo, decidindo acerca das provas necessárias ou dispensáveis, já que a ele se destinam.#
2.1 Efetividade e Segurança Jurídica: inimigos ou aliados?
A busca da segurança jurídica tem demonstrado, especialmente a partir da Revolução Francesa, a preocupação com formulação de regras processuais fechadas, de procedimentos sujeitos a várias revisões, sob a concepção de que a segurança é traduzida pelo exaustivo reexame da matéria. Desconfiamos dos nossos Juízes e, por isso, cercamos a prova de vários requisitos formais, produzindo-as, mesmo quando desnecessárias. Essa visão tradicional do processo não resiste, porém, diante da necessidade de realização tempestiva do direito, que marca as relações sociais ditas pós-modernas.
Se precisamos otimizar nosso tempo, conferindo eficácia às normas, temos de rever a idéia tradicional de que efetividade e segurança jurídica são conceitos contrapostos. A segurança jurídica “não significa saber previamente com absoluta certeza ou exatidão qual será a decisão do Juiz em um determinado caso. Mas significa que o Juiz está vinculado a determinados conteúdos normativos e determinados procedimentos para tomar a decisão”#. Se traduz pela necessidade de fazer atuar as normas processuais a partir da premissa de que há uma “tutela constitucional do processo”#. Ou seja, o ordenamento jurídico serve ao homem, foi em razão dele construído. Tem por objetivo permitir a organização social, eliminar a auto-tutela, regulando os conflitos de sorte a permitir que os seres humanos convivam em harmonia.
É dessa constatação que se extrai a idéia de que a efetividade do processo é expressão de segurança jurídica. Em outras palavras, só é possível pensar em segurança jurídica a partir de um contexto em que as normas jurídicas sejam tempestivamente aplicáveis de modo eficaz. A regra contida no inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal retrata essa concepção. Conferir caráter instrumental ao processo, distribuindo racionalmente o ônus do tempo, e com isso, emprestando-lhe efetividade, corresponde à correta compreensão do princípio dispositivo que, em última análise, representa a idéia de segurança jurídica no âmbito processual.
2.2 A proteção e o processo do trabalho.
A idéia de processo como instrumento, diretamente relacionada à necessidade de efetividade da tutela, determina um olhar diferenciado para suas regras. Um olhar que, de qualquer sorte, já está evidenciado pelos termos do artigo 818 da CLT#. De acordo com o referido dispositivo, a prova das alegações incumbe à parte que as fizer. Tal proposição é de ser examinada sob a premissa de que a relação jurídica substancial por ela instrumentalizada tem caráter diferenciado. Apenas nessa espécie de relação jurídica, o objeto não se separa do sujeito. O homem-que-trabalha não se separa da mão-de-obra que é colocada á disposição do tomador do seu serviço. Tal circunstância faz com que as normas que informam o direito do trabalho sejam orientadas pelo princípio da proteção. Proteção ao trabalho humano.
E ao contrário do que referem alguns doutrinadores, esse princípio tuitivo contamina, também, as regras processuais. Ora, se concebemos processo como instrumento de realização do direito material – fato nitidamente observado no texto da CLT e preconizado por toda a doutrina moderna – temos de pensar num instrumento que seja compatível com o direito que visa a realizar. A conseqüência direta desse raciocínio é a compreensão de que também o processo do trabalho é informado pelo princípio tuitivo.
A conclusão deve ser melhor explicada. É certo que no âmbito processual trabalhista é de ser observada a paridade de armas e a bilateralidade que conferem caráter democrático ao processo. Disso resulta que a incidência do princípio tuitivo no âmbito processual se dá na exata medida em que a distribuição do ônus da prova observa as premissas de aptidão para a sua produção. Ou seja, o princípio da proteção não determina que uma das partes seja beneficiada processualmente em detrimento da outra, como se poderia apressadamente pensar. Determina, isso sim, que a prova seja produzida pela parte que tem a obrigação legal de fazê-lo.
O fato de que o princípio tuitivo informa também o processo do trabalho é constatado mediante simples leitura dos dispositivos contidos na CLT. Ao lado do artigo 818, estão os artigos que estabelecem a obrigação de que o pagamento seja feito mediante recibo ou de que o empregador com mais de dez empregados mantenha registro escrito da jornada. São exemplos de situações em que a própria legislação, por que estabelecida com base no princípio da proteção, atentando para a realidade peculiar da relação jurídica que disciplina, fixa quem deva conservar os elementos que evidenciam determinado fato e, pois, quem deva prová-los em juízo.
Desse modo, as regras contidas nos artigos 74 e 464 da CLT – apenas para citar dois exemplos – embora sejam de direito material, dizem diretamente com a relação processual correlata. As obrigações ali contidas são assessórias ao contrato de trabalho, mas se destinam à produção da prova em eventual demanda trabalhista. Há interessante acórdão da lavra do Ministro João Orestes Dalazen, que expressa tal entendimento#. Em seu corpo, lê-se “o princípio protetivo, regra solar do direito do trabalho, na feliz expressão de Mário de La Cueva, não tem sua incidência restrita ao direito material do trabalho. Também o sistema processual trabalhista foi concebido para corrigir ou, ao menos, com os olhos postos nas distorções intrínsecas decorrentes da desigualdade material presente na relação de trabalho, quando levadas a juízo as lesões perpetradas contra os direitos subjetivos do trabalhador. Dentre os desequilíbrios existentes na relação processual que se estabelece entre trabalhador e empresa, um dos mais patentes, consoante recorda Plá Rodrigues, é o que se materializa na capacidade probatória. Isso porque o contrato de trabalho se executa, o mais das vezes, no interior da empresa, que é a sede do poder patronal, e é de onde o empregado deve procurar extrair as provas de que carece para estribar seu direito postulado. […] é sobretudo no campo da distribuição do ônus da prova que os mecanismos de correção da lei devem por-se em operação em ordem a equilibrar a relação jurídico-processual, ontologicamente desigual. Tal deve suceder pois, conforme preleciona Chiovenda, a divisão do ônus da prova deve obedecer aos princípios da justiça distributiva e da igualdade das partes (Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1969)”. Em seu texto, a decisão menciona a circunstância de que a manutenção de registro de horário é dever legal do empregador, com vista a permitir a produção da prova da jornada, que de outro modo restaria inviabilizada para o trabalhador.
A presença do princípio da proteção no processo do trabalho evidencia-se exatamente na existência e necessária observância de deveres que contaminam a distribuição do ônus da prova. A palavra ônus significa carga, peso. Não se confunde com dever. Quem tem o dever de agir e não age, está sujeito à coerção. Quem tem ônus, poderá permanecer inerte e daí não advirá coerção alguma. Arcará, porém, com as conseqüências do seu agir. Essa diferença não impede a intersecção dos dois conceitos. Como observa Pontes de Miranda, “não existe o dever de contestar, nem de provar” (o dever habita o campo do direito material), entretanto “em algumas espécies de sanção não reparativa, há sanção à infração de dever”. E explica “se a conseqüência é só a perda, ou modificação, há de pensar-se em simples elemento do suporte fático da perda do direito, pretensão, ação ou exceção, ou em elemento de extinção de possibilidade de adquiri-lo – nada se devia, antes. Se, com isso, se dá a satisfação a interesse de alguém, que tinha direito, pretensão, ação ou exceção contra o perdente, então há de pensar-se em dever, que havia, de se ter a conduta que não se teve. Para que haja dever, há de haver, pelo menos, direito de alguém, ainda que do Estado, a que esse dever corresponda”.#
Pois bem, chegamos ao ponto central desse breve estudo: a orientação jurisprudencial vertida na Súmula 338 do TST refere-se – intencional ou acidentalmente – ao dever do empregador de manter registro de horário, como elemento a gerar mera presunção relativa no âmbito do processo. Como tal, permite a produção de prova em contrário. Tentaremos examinar o raciocínio relativo à prova da jornada, para provocar alguns questionamentos em relação a essa orientação sumulada.
3. A SÚMULA 338 DO TST
Para compreendermos a orientação jurisprudencial em exame, devemos perceber o fato de que a CLT expressamente determina, ao empregador com mais de dez empregados, a manutenção de registro escrito da jornada#. Ao fazê-lo, estabelece um dever diretamente relacionado ao processo. O dispositivo, em realidade, especifica o tipo de prova legalmente aceitável, para o efeito de comprovação da jornada realizada pelo empregado. O faz por inspiração do princípio protetivo que orienta o direito do trabalho e que necessariamente contamina seu instrumento (o processo).
Súmulas são orientações jurisprudenciais. Por conseqüência, devem retratar o modo de interpretação das regras jurídicas em determinado contexto histórico e social. E aí encontram seu limite. Não regulamentam nem legislam. Ou, ao menos, não deveriam ter a pretensão de fazê-lo.
Quando trata do ônus da prova relativa à jornada, a Súmula 338 do TST refere, em seu item I, que “é ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT”. Nesse tópico, limita-se a reproduzir a previsão legal, o que a torna desnecessária como referência doutrinária de interpretação das regras jurídicas.
Em sua segunda parte, o referido item I da orientação em exame parece revelar uma evolução no exame da matéria, quando aduz que a “não-apresentação injustificada dos controles de freqüência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário”. O item III também menciona que “os cartões de ponto que demonstram horários de entrada e saída uniformes são inválidos como meio de prova, invertendo-se o ônus da prova, relativo às horas extras, que passa a ser do empregador, prevalecendo a jornada da inicial se dele não se desincumbir”.# Invertem o ônus da prova da jornada diante da não-apresentação dos registros ou da juntada de registros inidôneos. Por fim, o item II da aludida Súmula persiste na mesma linha de raciocínio. Dispõe que “a presunção de veracidade da jornada de trabalho, ainda que prevista em instrumento normativo, pode ser elidida por prova em contrário”.
Será que o entendimento implica mesmo evolução?
O pressuposto básico das afirmações contidas na súmula é o de que a não-apresentação dos registros gera presunção relativa passível de ser “elidida por prova em contrário”. Presunção é a relação lógica e racional que o Juiz estabelece entre o fato conhecido e o desconhecido#. Serve para suprir lacuna verificada quando do exame do caso concreto. Tanto assim que o artigo 212 do Código Civil menciona que o fato jurídico pode ser provado, inclusive, mediante presunção. Ressalva, apenas, as hipóteses em que a tal fato se impõe forma especial. Desse dispositivo se extrai a noção de que a presunção simples constitui meio de prova nas hipóteses em que a Lei não determina a espécie de prova pela qual deva se revelar determinado fato. Por isso, o artigo 230 do Código Civil# dispõe expressamente que as presunções simples não se admitem nos casos em que a lei exclui a prova testemunhal. Em tais casos, o que se tem é um dever legal de agir, cujo descumprimento gera a aplicação do que dispõe o artigo 400 do CPC#.
No âmbito do processo do trabalho, podemos pensar na hipótese de situação insalubre ou perigosa de trabalho, em relação a qual a Lei expressamente determina a realização de perícia. Por conseqüência, sua não-realização ou a ausência de requerimento de produção da prova pela parte que detém o respectivo ônus, não importará presunção de veracidade das alegações da parte contrária. É indispensável a produção da prova pelo meio eleito como adequado, pelo legislador.
No que tange à jornada, o raciocínio é o mesmo. A CLT determina a manutenção de registro escrito#. Limita, pois, o meio de prova (documental). A produção dessa prova incumbe ao empregador. A não-apresentação dos registros implica descumprimento de dever do empregador, sujeito, pois, à respectiva sanção. A prova oral, ainda que pretendesse desconstituir a tese apresentada pela outra parte, não teria o condão de afastar o imperativo legal pelo qual jornada se prova mediante documento, sempre que houver no estabelecimento mais de dez empregados.
O equívoco da orientação jurisprudencial é o de inverter a lógica em matéria de prova. Se a Lei especifica o meio para a prova de determinado fato e impõe a uma das partes contratantes a obrigação de produzi-la (como no caso da jornada), a sua não-produção implica o acolhimento da tese adversária, como sanção ao dever instituído pelo texto legal. É exatamente essa a dicção do artigo 400 do CPC. Admitir o contrário, implicaria tornar letra morta o artigo 74 da CLT, já que bastaria ao empregador descumprir a imposição legal de manutenção do registro escrito, para ver franqueada a possibilidade de elidir a pretensão ao pagamento de horas extras mediante a apresentação de testemunhas em juízo. Como salienta com maestria o Ministro João Orestes Dalazen, tal raciocínio é “kafkaniano”, na medida em que beneficia o infrator da Lei#. Em decisão proferida pelo TST, o Ministro João Orestes Dalazen menciona que o que o artigo 74, § 2º, da CLT estabelece “é a previsão da obrigatoriedade de formação de prova que, pré-constituída pelo empregador, destina-se a amparar o empregado na produção de elementos probatórios destinados à comprovação de jornada de trabalho. […] o registro de ponto constitui prova obrigatória na legislação brasileira para o empregador com mais de dez empregados. Sonega essa prova substancial ao julgamento da lide o empregador que deixa de exibir em Juízo o controle por escrito do horário de trabalho, ou o exibe, mas, inequivocamente, os documentos não espelham a realidade fática. Em um e em outro caso, descumpre o empregador a lei e daí dimana a presunção comum favorável ao alegado pelo empregado. A meu juízo, não se pode beneficiar o infrator da lei, que, com sua orientação, prejudica a fiscalização e a prova da jornada de labor efetivamente cumprida” (sem grifo no original). Embora faça referência à presunção gerada pelo descumprimento do dever, o que se tem – quando não observado dever legal afeto à pretensão (direito processual) – é a aplicação de uma sanção legalmente prevista, como também bem leciona Pontes de Miranda, na passagem antes citada. Portanto, a não-apresentação dos registros, quando o empregador está obrigado a mantê-los, ou a exibição de controles inidôneos, não gera mera presunção de veracidade das alegações contidas na petição inicial, mas sim impõe a aplicação da sanção contida no artigo 400, II, do CPC, qual seja, de indeferimento da prova oral.
Falando expressamente do entendimento consubstanciado na Súmula 338, acrescenta o Ministro que “a diretriz em apreço, todavia, a meu sentir, somente pode ter lugar quando e se o empregador, em obediência à lei, dispuser do controle de freqüência” (idôneo) e que “a não se interpretar assim a Súmula 338 do TST, estaríamos concebendo uma situação verdadeiramente “kafkiana”: melhor seria aos empregadores jamais manterem o registro de ponto dos empregados visto que, assim, nunca se veriam intimados a exibi-los em Juízo e, em derradeira análise, jamais se criaria a presunção de que cogita a Súmula 338 do TST”. O único reparo a ser feito, em nosso entender, diz com a circunstância de que não se tem, no caso, verdadeira presunção, mas dever do empregador, razão pela qual a argumentação jurídica tão bem apresentada pelo Ministro Dalazen se afina com a aplicação do processo como instrumento contaminado pelos princípios que justificam a existência desse ramo especial do direito.
O que se percebe com nitidez é uma tentativa de adequar os termos da orientação sumulada ao caráter instrumental do processo, extraído – é importante frisar – dos próprios dispositivos insertos em nosso ordenamento jurídico. Vale dizer, a decisão tenta conferir eficácia às normas jurídicas em apreço, sem dizer o óbvio: a orientação vertida na Súmula 338 do TST está equivocada.
É indispensável, porém, que percebamos onde está o equívoco do entendimento consolidado, pois se persistirmos em compreender como conseqüência da não-exibição dos registros a criação de presunção favorável ao empregado, teremos necessariamente de admitir a produção da prova em sentido contrário#. Teremos, ainda, de considerar a tese de que o Juiz deve intimar o empregador a apresentar tais registros, sob pena de não ser aceitável a presunção de veracidade da jornada descrita pelo empregado.
Nesse aspecto, vale lembrar que o CPC trata em seções diferentes a prova documental e a exibição de documentos. A prova documental, quando imposta por Lei como o meio adequado de demonstração de determinado fato jurídico, constitui dever passível de gerar a respectiva sanção legal. A exibição de documentos – a ser exigida pelo Juiz quando entender necessária á solução do litígio – constitui ônus atribuído à parte, cuja conseqüência é a presunção legal de veracidade das alegações em contrário. Presunção relativa e que, portanto, tem de admitir prova em contrário.
Em outra decisão de sua lavra#, o Ministro João Orestes Dalazen acrescenta a circunstância de que a não-apresentação dos cartões-ponto ou a apresentação de registros inidôneos implica confissão tácita da jornada alegada pelo autor. Retorna-se, pois, à idéia de presunção legal relativa, quando em realidade o que se tem é um dever legal, de caráter impositivo, diretamente relacionado ao princípio tuitivo que informa o direito do trabalho.
4. UM CONVITE À REFLEXÃO
Desse exame positivista dos elementos contidos em nosso sistema processual, a fim de revelar a existência de um dever legal, ressai evidente compromisso com o caráter social do direito do trabalho. A linguagem é instrumento de poder#. Não existem palavras inocentes. Nosso discurso é sempre permeado de ideologia. Estamos comprometidos, enquanto indivíduos, quando decidimos, porque antes de proferir a sentença, nos decidimos como seres humanos. O ato de julgar é, pois, a despeito das amarras em que se pretende encerrá-lo, um ato de decidir-se, de compreender.
Segundo Hannah Arendt, negar o pensamento é fugir do medo, buscando não se comprometer. Como o medo aniquila a felicidade, negamos pelo pensamento aquilo que não queremos que nos afete#. Porém, somos juízes. Enfrentamos diariamente teses permeadas de conteúdo ideológico, com a missão de solucionar de modo imparcial – nunca neutro – os conflitos sociais. A jornada está entre as matérias mais importantes da relação de trabalho. Diz com o tempo que um ser humano coloca à disposição de outrem.
A solução que a Súmula 338 do TST nos apresenta não é apenas confortável. Parece também lógica e afinada com os princípios tão caros ao direito do trabalho. Essa impressão inicial, porém, não resiste a um exame crítico. A compreensão da norma contida no artigo 74 da CLT como obrigação (dever) do empregador, diretamente relacionada ao processo do trabalho, representa mais do que mero jogo de palavras. Implica assumir uma postura diferenciada diante do processo. Implica optar por uma visão comprometida das regras jurídicas.
Por trás da breve análise que pretendemos fazer, está a noção elementar de que devemos garantir eficácia às normas trabalhistas, por que disso depende a dignidade de nossos trabalhadores, porque disso depende a existência de empregadores preocupados em observar os direitos desses empregados. A eles interessa seja observada a regra prevista no artigo 74 da CLT, negando a produção da prova oral quando infringido o dever legal ali imposto. Trata-se de compromisso social, que é assumido perante todos aqueles que lidam com o direito do trabalho.
A importância do ato de pensar reside no fato de que é aí que assumimos o compromisso com nós mesmos. Quando pensamos sobre determinado assunto, realizando esse diálogo-consigo-mesmo, acabamos por tomar posicionamento. A provocação contida no presente estudo é convite à reflexão do caráter instrumental que justifica a existência do processo e da necessidade imperativa de que não usemos as normas processuais para retirar a eficácia dos instrumentos de proteção de que dispomos e que constituem o cerne do direito do trabalho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALTHUSSER, Louis. Montesquieu – a Política e a História. Trad. Luz Cary e Luisa Costa. 2. ed., Martins Fontes.
ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. 5. ed., Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de Processo Civil. V. 1, 6. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
______. Processo e Ideologia. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
BEBBER, Júlio. Intervalo Intrajornada. Aplicação da Orientação Jurisprudencial nº 307 da SBDI-1 do Tribunal Superior do Trabalho. Artigo publicado na página Jus Navigandi, http://jus3.uol.com.br/, acesso em set. 2006.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 6. ed., Coimbra: Almedina, 1993.
DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. 2. ed., São Paulo: Saraiva 2002.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 10. ed., São Paulo: Malheiros, 2002.
MARINONI, Luiz Guilherme. Da Teoria da Relação Jurídica Processual ao Processo Civil do Estado Constitucional. Revista Jurídica. Editora Fonte do Direito. Ano 54, nº 347, set. 2006.
PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Parte Geral. Tomo V, São Paulo: Bookseller, 2000.
STRECK, Lênio. Hermenêutica Jurídica E(m) Crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao Novo Código Civil. Org. Sálvio de Figueiredo Teixeira. V. III, Tomo II, Rio de Janeiro: Forense, 2003.
WARAT, Luis Alberto. A Ciência Jurídica e seus Dois Maridos. Santa Cruz do Sul: Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul, 1985.
PROVAS
Ricardo Carvalho Fraga
www.tex.pro.br
SUMÁRIO: Introdução; 1. Fundamentar e/ou Convencer; 2. Distante das ordálias; 3. Fatos e Direito; 4. Cedo ou tarde demais; Conclusão.
INTRODUÇÃO
KARL MARX, tratando das transformações e superações de diversos modos de produção, tais como, o moderno burguês, o feudal, o antigo, o asiático, entre outros, apontou certa constatação, mais genérica, no sentido de que: “Por isso, a humanidade se propõe sempre apenas os objetivos que pode alcançar, pois, bem vistas as coisas, vemos sempre que esses objetivos só brotam quando já existem ou, pelo menos, estão em gestação as condições materiais para a sua realização.”#
O aperfeiçoamento da capacidade humana de melhor utilização da fala tem sido estudado, havendo novos avanços em áreas antes desconhecidas. A comunicação humana, certamente, ainda nos propiciará uma melhor compreensão dos semelhantes, mesmo e inclusive, nas nossas diferenças.
No campo específico do Direito, muitas são as tentativas de estabelecimento de regras e sistematização de aprendizados relativos ao difícil momento de produzir provas em juízo. No estudo geral desta matéria existem controvérsias, assim como outras tantas na parte específica de cada tipo de prova, as quais abordaremos apenas em algumas particularidades.
No presente estudo, busca-se apresentar algumas inquietações surgidas, acima de tudo, no convívio com os juízes e demais profissionais que atuam perante a Justiça do Trabalho. Os ensinamentos doutrinários aqui apontados, seguramente, não são exaustivos; de qualquer modo, relacionam-se mais diretamente com os debates antes mencionados.
Ao final e ao longo do presente texto, buscar-se-á expressar a crença na possibilidade e necessidade de novas conquistas do direito processual quanto a matéria das provas. Estes novos passos, além de outros, certamente, nos possibilitarão construir um Poder Judiciário bem diferente e muito superior ao atual.
1. FUNDAMENTAR E/OU CONVENCER
JOSÉ MARIA ROSA TESHEINER ao final de seu comentário ao princípio da persuasão racional sustenta que: “É necessário que se compreenda que o advogado precisa convencer o juiz, mas que o juiz não pode pretender convencer a parte vencida.”#
CARLOS ALBERTO ÁLVARO DE OLIVEIRA, pretendendo refutar essas observações, diz que o Professor referido “termina por adotar visão puramente de poder ao minimizar o valor da motivação e emprestar maior significação à decisão justa”. Este reconhecido processualista e, agora, Desembargador integrante do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em parágrafo que antecede a nota 79, transcrita parcialmente na linha anterior, revela a percepção de um novo momento: “… inestimável fator de coesão social e da solidez das instituições, apresentando-se, assim, como garantia política inerente ao próprio Estado de direito. Cuida-se, ao fim e ao cabo, de balizar o poder do órgão judicial, bem capaz de se tornar exacerbado, principalmente em termos de apreciação dos fatos da causa, em vista do princípio do livre convencimento, largamente adotado nos sistemas processuais do século XX. Nesse quadro, a motivação assume realmente um papel fundamental de racionalização da valoração das provas, não afastada nem mesmo pela discricionariedade ínsita nesta, reclamando decisão jurisdicional sempre justificada de forma adequada.”#
O renomado processualista citado por último assinalou o enorme avanço representado pelo novo texto constitucional de 1988, a exigir fundamentação em todas as decisões judiciais. Medite-se que, na esfera das decisões administrativas, ainda persiste arraigada e injustificada resistência ao novo preceito do artigo 93, inciso IX. No site da Associação dos Juízes de Direito do Rio Grande do Sul, AJURIS, encontra-se intenso debate sobre o tema.#
De qualquer modo, estamos, até aqui, diante de diferentes aspectos de um mesmo debate. A necessidade de fundamentação impõe-se pelo simples abandono do antigo sistema da prova legalmente taxada, o qual se examinará mais adiante. Diverso é o estudo sobre a postura mais adequada da magistratura, independentemente do maior ou menor respeito ao princípio da celeridade. Aqui, seguramente, reside a profunda contribuição do Professor TESHEINER, que acrescenta em sua Página Pessoal na Internet: “Volto ao tema, não porque pretenda polemizar, mas porque penso que tenho algo a dizer. É que formei minha convicção, não por assimilação daquilo que todos afirmam, mas por iluminação: aquela espécie de “insight” que tem o escravo, de sua própria condição, ao dar-se conta de que é demais o que se lhe exige de esforço diário.
Os princípios, por serem princípios, são formulados de maneira genérica, como se não admitissem exceções. Daí o problema: eventuais exceções ao princípio terão que ser postas na legislação ordinária que, todavia, não pode contrariar a Constituição… Fica-se, assim, sem um instrumento para estabelecer as exceções. Tenta-se resolver o problema com a idéia de que um princípio constitucional limita outro. Fala-se no princípio da proporcionalidade ou em contraposição de princípios, tudo no plano das generalidades.
No que diz respeito ao princípio da motivação, indaga-se da necessidade de motivar despacho de mero expediente … de motivar decisão meramente homologatória … da exigência de resposta a cada argumento esgrimido pela parte … Alguns não se contentam com fundamentação baseada na lei, embora se funde na lei nosso sistema jurídico: exigem que o juiz se pronuncie expressamente não apenas sobre os fatos e as normas legais incidentes, mas também sobre seus valores …
Ada Grinover pretende que o juiz seja totalmente transparente, na sua motivação, (como se isso fosse possível). O homem não é só razão. É também sentimento. A própria razão é iluminada por intuições intraduzíves em palavras. Transparência total é impossível.
Alguns dos que escrevem sobre o princípio da motivação não têm consciência do que se exige de um juiz no Brasil. São centenas de decisões que deve proferir a cada semana. Não se lhe pode exigir motivação exaustiva em cada decisão. Já é muito que aponte o fundamento legal.
Como se vê, não engulo bem o princípio da motivação, pelo menos do modo como apresentado pela doutrina, embora não tenha jamais julgado sem fundamentar.
De um modo geral, penso ser suficiente que o juiz indique a causa de pedir que o leva a acolher o pedido, não precisando rebater um a um os argumentos apresentados pela parte adversa. Não se pode exigir que responda um a um aos argumentos dos advogados, mesmo porque tem que decidir, ainda que ambas as partes alinhem argumentos para os quais não haja resposta cabal!
Serve a motivação para pôr racionalidade nas decisões. O sentimento do justo ou a intuição que levaram o juiz a pender para uma solução podem não resistir ao crivo da razão. Cumpre então adotar a solução contrária. Creio ser essa a maior utilidade da motivação. Ela não é primariamente endereçada às partes, que dificilmente se deixarão convencer, nem aos tribunais superiores, que adotarão a solução de sua própria jurisprudência, por melhor que seja o raciocínio desenvolvido na sentença recorrida. As partes, o tribunal ad quem e a comunidade jurídica também são destinatários da motivação, mas o principal destinatário é o próprio juiz. Ele apresenta a si próprio os motivos de sua decisão, para que ela seja racional.
Parece haver aí uma contradição, pois disse antes que sentimento e intuição conduzem o juiz. Mas não há contradição. Sentimento e intuição são motivos da decisão que não se deixam revelar. Constituem a parte submersa do iceberg. O que pode ser revelado são apenas os argumentos de razão, que confirmam (ou não) o sentimento ou intuição inicial. (grifos atuais)#
Fica-se, agora, mais próximo de se entender a própria finalidade da fundamentação das decisões judiciais. Hoje, esta necessidade, constitucionalmente reconhecida, nada tem a ver com algum objetivo de convencer as partes e, provavelmente, nunca tenha tido. Na verdade, a tentativa de convencer o jurisdicionado é que, talvez, possa revelar um comportamento quase autoritário. No mínimo, o tema relativo ao convencimento poderia ser melhor tratado junto ao debate sobre legitimação do próprio Estado, uso das técnicas de conciliação e utilização, também limitada, dos aprendizados contemporâneos de arbitragem, entre outros temas, os quais são bem diversos dos aqui tratados.
ALAIN SUPIOT, um dos principais autores do Direito do Trabalho na atualidade, apresenta profunda e atual observação neste tema. Embora utilizando a palavra “valores”, este estudioso francês diz qual é a exata finalidade da indicação dos fundamentos de uma decisão judicial, que se impõe cada vez mais, também em seu entendimento: “Como resolver? Jamás en nombre delia ley del más fuerte. Sin duda, el más fuerte – la corrupción en la política y la mercantilización de las profesiones jurídicas dan testimonio de ello – tiene medios para comprar a los que hacen las leyes o concurren a aplicarlas. Pero incluso el jurista que se ha vendido al más fuerte no puede resolver en nombre del más fuerte. El parlamentario financiado por un grupo de presión, el abogado que cobra de una organización patronal o sindical, o el juez o universitario comprado por un grupo de intereses (si existiera, lo que no quiera Dios!) no pueden apoyar su decisión o su opinión sobre la autoridad del que les paga, pues siempre deben referirla a un valor que trascienda las circunstancias del problema que se les ha sometido. En nuestra cultura legalista, esta idea de referencia evoca primero la referencia a la ley, y la forma silogística de nuestros juicios y de nuestras maneras de razonar en derecho. Pero esta idea de referencia tiene un alcance mucho más amplio. Puede ser el precedente (o la ausencia de precedente) para el jurista de common law, el principio general del derecho para el juez administrativo o constitucional, el interés general para el ponente de una ley, etc. En todos los casos, tal referencia significa que se resuelve el caso en nombre de lo que trasciende el caso, que se encaja la decisión en un sistema normativo más vasto que la legitima (en nombre de la Ley, en nombre del Pueblo francés, en nombre de la República, etc.).” (grifos atuais)#
2. DISTANTE DAS ORDÁLIAS
MOACIR AMARAL SANTOS, logo após referir o tema do ônus da prova no direito romano, assinala a relevância dos ensinamentos de BENTHAM, WEBBER, BETHMANN-HOLLWEG, FITTING, GIANTURCO, DEMOGUE, bem como de CARNELUTTI, adotando o entendimento de CHIOVENDA de que “o ônus de afirmar e provar se reparte entre as partes, no sentido de que é deixado à iniciativa de cada uma delas provar os fatos que deseja sejam considerados pelo juiz, isto é, os fatos que tenha interesse sejam por este tidos como verdadeiros”.#
JOSÉ MARIA ROSA TESHEINER acrescenta que o conceito de “onus surgiu no processo e invadiu o direito material” e conclui que a dificuldade na distinção entre ônus da prova em sentido objetivo e subjetivo desapareceria se utilizássemos o conceito de direito formativo à produção das provas, “tanto mais que a ciência processual nunca conseguiu explicar bem como é que ao autor incumbe não só provar os fatos constitutivos como também produzir a contraprova dos fatos impeditivos ou extintivos alegados pelo réu”#.
MOACIR AMARAL SANTOS, mais adiante, analisa o sistema do Código de Processo Civil, afirmando que este adotou o sistema da persuasão racional. Ele transcreve e comenta o Código de Processo Civil, artigos 131, 366, afirmando que este consagra verdadeira “regra legal”, 334, IV, sobre “pesunção legal”, 335 sobre “regras de experiência”. Menciona, também, inúmeros artigos do Código Civil, concluindo, de qualquer modo, que “o Código de Processo Civil se filia ao sistema da persuasão racional”.# A mesma conclusão é adotada pelo Professor TESHEINER, que, apesar de mencionar o mesmo processualista, apresenta exposição bem diversa do tema, em capítulo antes mencionado longamente.
EDUARDO COUTURE analisa o conceito de “critica sã”, em momento bem anterior. Afirma que este outro sistema foi adotado pelos países influenciados pelo modelo da Lei Espanhola de 1855. Afirma que: “Este conceito representa uma categoria intermediária entre as provas legais e a livre convicção. Sem a excessiva rigidez de umas e sem a demasiada incerteza da outra, representa uma fórmula feliz, às vezes elogiada pela doutrina, mas pouco menos que desconhecida em suas origens, para regular a atividade intelectual do juiz em face da avaliação da prova.
As regras da crítica sã reproduzem, antes de mais nada, as regras do correto entendimento humano. Nelas se combinam as regras da lógica, com as regras da experiência do juiz. Umas e outras contribuem por igual para que o magistrado possa avaliar a prova (seja por testemunhas, peritos, vistoria judicial, confissão qualificada) com base no são raciocínio e no conhecimento experimental das coisas.”#
O autor uruguaio revela profunda e incomum compreensão da marcha da história. Ele, já na apresentação, escrita em Montevideo, em 1942, aponta que “qualquer serenidade” estaria no passado e que o futuro seria “pura esperança de dias melhores” e, no específico deste tema, diz: “As máximas de experiência, às quais já foi feita menção, contribuem, tanto quanto os princípios lógicos, à apreciação da prova.
O juiz, seja-nos permitido insistir, não é uma máquina de raciocinar, mas sim, essencialmente um homem que toma contato com o mundo que o rodeia, e que ele conhece através de seus processos sensoriais e intelectuais. O prudente arbítrio é, portanto, a apreciação lógica de certas conclusões empíricas de que todo o homem se serve para movimentar-se na vida.
Essas conclusões não têm o caráter estrito dos princípios lógicos tradicionais, sendo antes contingentes e variáveis com relação ao tempo e ao lugar. O progresso da ciência é constituído por uma longa cadeia de máximas de experiência derrogadas por convicções mais exatas; e em face do próprio desenvolvimento dos princípios lógicos, a história do pensamento humano é um constante progresso na maneira de raciocinar.” (grifos atuais)#
O processualista do país vizinho, conhecendo as modificações nos estudos dos demais centros culturais, observa, algumas páginas adiante, a utilização dos diversos conceitos. Assinala que na doutrina européia, dos demais países, quando se afirma a “livre convicção” se quer, acima de tudo, afastar-se do sistema da “prova legal”, até mesmo com “amplitude maior que a usual no sistema dos países hispanoamericanos”.
ENRIQUE VÉCOVI, comentando a realidade dos países latinoamericanos, observa que “La doctrina latinoamericana, en forma prácticamente unánime, ha rechazado la distinción que petendió fundar nuestro maestro Couture, entre apreciación racional de la prueba y sistema de la sana crítica”.#
Percebe-se, pois, que a superação do primeiro sistema, da prova legal, não tem sido fácil e rápido. “Critica sã” pareceu como sistema intermediário e mais sábio para COUTURE. Para outros, o intermediário seria o da “persuasão racional” ou mesmo o “livre convencimento”, motivado. ALEXANDRE FREITAS CÂMARA assinala que são visíveis, ainda hoje, os resquícios do sistema da prova legal, originário das ordálias ou “juízos de Deus”, citando os artigos 401 e 902 do CPC, respectivamente sobre prova testemunhal exclusiva em contratos de valor maior e contrato de depósito.#
WAGNER GIGLIO apresenta certa consideração específica sobre o Direito Processual do Trabalho e termina por adotar o entendimento de que vigora neste ramo o mesmo sistema do Código Processual Civil, que seria o do livre convencimento:
“Produzida a defesa e não havendo acordo, inicia-se a fase probatória do processo (CLT, art. 848).
Os princípios gerais que informam a teoria da prova são estudados no Direito Processual Civil, e se aplicam ao processo trabalhista. As diferenças entre o processo ordinário e o trabalhista, nessa matéria, são poucas, pequenas e, regra geral, apenas de procedimento.
Assim, prevalece no processo do trabalho o mesmo sistema do livre convencimento, na apreciação da prova, consubstanciado no art. 131 do Código de Processo Civil; o juiz do Trabalho, como o Juiz de Direito, atenderá aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes, para formar seu convencimento, devendo, nada obstante, fundamentar os despachos e sentenças. “Os atos e termos processuais não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir, reputando-se válidos os que, realizados por outro modo, lhe preencham a finalidade essencial” (CPC, art. 154).”#
MANOEL ANTONIO TEIXEIRA FILHO distingue os sistemas adotados no Direito Processual do Trabalho, onde haveria um para o Individual e outro para o Coletivo:
“O CPC de 1973 adotou, claramente, o princípio da persuasão racional, a que ainda se poderia designar de livre convencimento motivado, como se constata pela expressão do art. 131, já mencionado.
Não há dúvida de que o sistema da persuasão racional foi também adotado pelo Direito Processual do Trabalho, cuja inferência se extrai – embora palidamente – da leitura do art. 832, “caput”, da CLT, onde se alude à “apreciação das provas” e aos “fundamentos da decisão”. A adoção supletiva de certas normas processuais civis, entrementes, como é o caso do art. 131, robustece essa conclusão.
Equivocou-se, portanto, o ilustre Wagner Giglio (ob. cit., p. 163) ao supor que o art. 131, do CPC, consubstanciasse o princípio do livre convencimento; o que ali está é o da persuasão racional. No mesmo lapso incorreu C. P. Tostes Malta (“Prática do Processo Trabalhista”, Rio, Ed. Trabalhistas, 1979, p. 378).
Quanto às ações (dissídios) coletivos, cremos não haver erronia em afirmar-se que prepondera aí o sistema do livre convencimento (ou livre convicção), pois não ocorre, necessariamente, a vinculação da decisão às provas dos autos; a ser assim, estar-se-iam subtraindo, em muitos casos, a normatividade dessas decisões e o próprio caráter jurígeno que lhe é peculiar.”#
LUCIANE CARDOSO, em belo e recente estudo, expressou com clareza as enormes possibilidades de novos aprendizados do Direito e, em especial, no campo probatório. Diz, ela: “Se a hermenêutica filosófica representa luz nova à noção de interpretação do Direito, como um todo, tal enfoque deve, necessariamente atingir o particular, no que diz respeito às provas. Nesse prisma, o trabalho buscou apresentar e discutir alguns elementos para uma reflexão sobre o paradoxo das possibilidades interpretativas da fala informal da testemunha, no horizonte formal que é o processo judicial.
Destacamos, por fim, que a prova jurídica, e em especial a testemunhal, traz consigo, inevitavelmente, o seu caráter lógico e axiológico, comportando uma análise psicológica e filosófica. Por isso, devem ser rompidos os departamentos estanques que isolam o Direito dessas ciências, a fim de que os operadores jurídicos possam, ao compreender noções básicas das mesmas, obter uma avaliação fenomenológica mais completa da prova testemunhal.
Futuros estudos poderão enfocar tópicos, como a análise psicanalítica da linguagem da testemunha, e como esta é apreendida pelo juiz. Será, também, importante, para discussões ulteriores, aprofundar o estudo da justificabilidade e da racionalidade da hermenêutica jurídica, no contexto da escolha concreta do juiz por uma versão de determinada testemunha e não outra, temas interessantes sobre os quais desde sempre os operadores do Direito se questionam.
A atividade retórica desenvolvida no processo, pelo juiz, é necessidade decorrente do sistema, que exige que as decisões sejam motivadas. Entretanto, numa época de processos politicamente vinculados à idéia de Estados Democráticos, a necessidade de um novo enfoque de justificação judicial renasce pela nova filosofia jurídico-hermenêutica, que requer da fundamentação da sentença uma expressão ampliada da racionalidade judicial.” (grifo atual)#
No específico da prova testemunhal, o referido texto, algumas linhas antes, apresenta novos e amplos horizontes, os quais poderão ser alcançados, sem que se esqueçam as enormes conveniências da prova documental, inclusive quanto a certeza e celeridade.# Mesmo tendo o cuidado de Juíza do Trabalho, que atua junto ao trabalhador ainda com dificuldades em dominar a arte de falar, ela propõe: “Todos estes resquícios da prova legal que permanecem nos nossos códigos, podem ser revistos pela revaloração da linguagem no Direito. Assim, a filosofia lingüística questiona a filosofia da consciência de onde provém as teorias principais do Direito, inclusive as que abordam a prova, com forte predomínio da racionalidade positivista.
Em conseqüência do estudo precedente, sentimo-nos autorizados a concluir que a prova testemunhal aparenta ser o mais frágil meio de convencimento judicial. Entretanto, justamente em razão de seu caráter dúbio, como linguagem, decorrem amplas possibilidades interpretativas que são, por vezes, desprezadas na consciência formalista da maioria dos juristas.
A nova teoria da hermenêutica jurídica que surge em nosso tempo, privilegiando os elementos lingüísticos do Direito, pode ampliar o sentido desse meio de prova-oral, prejudicado pela lógica do pensamento cartesiano, o qual busca no processo, segundo um raciocínio formal, a fixação de uma verdade perene”.
A filosofia hermenêutica traz à luz uma idéia de linguagem que não é uma terceira coisa entre sujeito e objeto, mas envolve o intérprete e o interpretado, num mundo constituído lingüisticamente como totalidade. Não se pode, a partir desse contexto, admitir que haja um sentido autônomo para o texto. O sentido é produzido pela interação significativa, em que emerge do texto uma determinada expectativa de sentido, que será confrontada e atualizada pelo contexto histórico que envolve o intérprete e o texto a ser interpretado, que bem pode ser a fala da testemunha. Na situação hermenêutica, o jurista está identificado com o historiador, porque não possui um acesso imediato ao valor histórico de um determinado texto, mas deverá desvelar um significado que seja conectado com o presente e produza sentido”. (grifos atuais)#
3. FATOS E DIREITO
A presunção de conhecimento da lei afasta a necessidade prova sobre esta. O artigo 337 do Código de Processo Civil apenas excepciona quanto a prova de direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário. ALEXANDRE FREITAS CÂMARA registra que a regra deste artigo não se aplicaria quanto às leis da própria comarca do Juiz.# Esta observação igualmente era feita por GABRIEL REZENDE FILHO relativamente a norma simular do antigo Código de Processo Civil de 1939, artigo 212#. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal não poderia deixar de conhecer ato do Poder Executivo do Distrito Federal, conforme Acórdão mencionado por THEOTONIO NEGRÃO, em seu CPC Comentado, Edição de 2000.
EDUARDO COUTURE noticiava já ter ocorrido certa exceção, em seu País, quanto a proliferação de normas relativas a registro de Patentes, quando era necessária a prova da regra vigente.# Esta excepcionalidade nos faz pensar sobre o futuro de nosso País, onde já existem mais de quatro mil Medidas Provisórias, várias delas reeditadas com redação diversa da original. A respeito vale lembrar o alerta de PAULO BONAVIDES, que já aponta uma grave “falência representativa do sistema legislativo”.#
Os conhecimentos doutrinários servem para auxiliar nos julgamentos, entre outros. Em nossa legislação inexiste necessidade de que esses constem nos fundamentos de uma decisão judicial, e, consequentemente, inexiste prova sobre os mesmos. Em certo momento, houve disposição da Lei do Uruguai, artigo 466 do Código de Processo Civil, no sentido de que se “impunha ao juiz a citação de “leis e doutrinas aplicáveis” nos considerandos de sua sentença”.#
JOÃO ANTONIO PEREIRA LEITE, em brilhante estudo sobre “A Presunção no Direito do Trabalho”, expressa, lembrando PONTES DE MIRANDA, que: “É supérflua a regra da lei que autoriza o juiz… a pensar” e que seria: “Recomendável, acaso, mais acuidade e coragem, sem imprudência, no proclamar certas presunções e repelir outras… Percebe-se, v. g., na jurisprudência, implícita presunção de excepcionalidade das horas extras, quando, sabidamente, em certos setores, a prorrogação habitual é a regra. A presunção da despedida tem sido aceita pela melhor doutrina, sem lograr, porém, o aplauso dos tribunais.
Ante a vacilação ou natural incerteza do julgador, as presunções legais relativas serviriam de indiscutível instrumento de Justiça, aos que se vêem impossibilitados de realizar a prova, pela debilidade de sua condição social e econômica. O ampliar o número das presunções legais, “juris tantum”, escassas em nosso direito positivo, é providência apta a solucionar questões até hoje precariamente resolvidas.” (grifo atual)#
Ainda que se afirme que o direito probatório diga respeito, acima de tudo, ao direito processual, é oportuno que se medite sobre certa observação mais abrangente de FRANCISCO ROSSAL DE ARAÚJO, buscando desvendar o próprio ato de julgar: “Assim como cada indivíduo possui a sua noção de realidade e poderá compartilhá-la com outros indivíduos através da comunicação, o processo judicial também é um processo comunicativo no qual o juiz e as partes compartilharão os seus pontos de vista de observação da realidade. Através da observação e da comunicação, poderá o julgador apreender a realidade e modificá-la, segundo os valores constantes da norma jurídica ou segundo os seus valores subjetivos, sempre dentro do espaço de indeterminação deixado pela própria norma jurídica.
– As partes, ao expor suas razões no processo, já interpretaram a realidade e a enunciam para o julgador conforme sua percepção e seus interesses. O juiz ponderará as versões e construirá a sua, segundo técnicas processuais (meios probatórios) e normas materiais que condicionam a sua interpretação (ônus probatórios e presunções). No final, construirá a sua própria versão da realidade, que servirá como base da sentença judicial.” (grifo atual)#
A própria escolha dos fatos a serem provados e, posteriormente, julgados já constitui uma definição de relevância. Em determinada situação, bem peculiar, relativa a julgamento de legalidade ou ilegalidade de uma greve, a Juíza FANY FAJERSTEIN acreditava estar julgando a paralisação como demonstração de repúdio à morte de colega na saída de uma derradeira assembléia. Ao contrário, seus colegas de Turma do E.TRT de Campinas acreditavam estar julgando apenas a legalidade ou ilegalidade em razão da procedência ou não das próprias reivindicações e demais requisitos da lei específica de greve. Em seu voto vencido, ela finalizou sustentando que: “No caso analisado, constatamos que houve uma paralisação do trabalho, que entendemos decorrente da morte do sindicalista. Até aí somente averiguamos matéria de fato, matéria do mundo do ser.
Sendo o julgamento uma conexão entre o fato e o direito, a saber, entre o mundo do ser e do dever ser, expresso pelas normas jurídicas, poderia ser aplicada a Lei de Greve?
Entendemos que não, pois, apesar das conseqüências objetivas serem as mesmas, a saber, paralisação do trabalho, no nível dos fatos, a causa imediata foi a morte do sindicalista, fato que foge totalmente à Lei de Greve.”#
A dificuldade quanto a exata definição do papel do Juiz ao interpretar os fatos e dizer o Direito, somente, é superada pela frágil compreensão quanto as finalidades dos diferentes graus de jurisdição. Em outro momento, dissemos em estudo conjunto com LUIZ ALBERTO DE VARGAS que: “Deste modo, urge um debate mais profundo sobre a melhor concepção da natureza do procedimento revisional. Desde logo, assume-se o risco de afirmar que a revisão da sentença não é o refazimento da mesma como se a Turma do Tribunal se transformasse em juiz singular. Antes de tudo, porque essa transmigração é impossível. Por melhor que os registros de ata reproduzam os depoimentos de partes e testemunhas, jamais poderão transmitir a realidade complexa ocorrida na sala de audiência que somente o juiz, “in loco” pode captar.”#
No mesmo estudo, em capítulo sob o título “Máquinas e Computadores” apontou-se que “estamos diante de um debate poucas vezes enfrentado com a definição das exatas finalidades e pressupostos filosófico-jurídicos de cada julgamento, valendo como exemplo, quase único, o belo e rico texto da Juíza do Trabalho de Campinas Fany Fajerstein”, aqui, novamente, já referido.
A própria celeridade, além do enfraquecimento do papel do julgador de primeiro grau e, acima de tudo, a ausência de uma formulação mais cristalina dos aprendizados do Direito ficam esquecidos e relegados. Por isto, no mesmo estudo, sob o título “Tribunais e Celeridade”, mais próximos à conclusão, buscou-se apontar: “Em realidade, cada vez mais, em todo mundo desenvolvido vem se impondo um novo trabalho aos Tribunais. Como o julgamento de “todos os casos” é impossível, o julgamento do Tribunal deve ser, cada vez mais, um julgamento exemplar, que busque formar e cristalizar uma orientação jurisprudencial. …Na medida em que avance nestes novos rumos melhor o primeiro grau poderia cumprir seu papel e compreender o efetivo papel dos Tribunais, quanto à formação e cristalização da jurisprudência, inclusive com a edição de súmulas, as quais, certamente, passariam a representar apenas a cristalização de alguma jurisprudência anterior razoavelmente cristalizada, sem trazer surpresas ou incompreensões quando editadas. Medite-se que mesmo os projetos de reforma constitucional dos Deputados Jairo Carneiro e Aloysio Nunes Ferreira, com os quais se tem profundas e inúmeras divergências, inclusive no específico das súmulas vinculantes, no mínimo, cuidavam de que houvesse anterior jurisprudência antes destas.”#
A Lei 9.957, relativa ao rito sumaríssimo na Justiça do Trabalho, apresenta algumas novidades, nestes temas. Acaso mantido o julgamento de primeiro, por seus próprios fundamentos, não será lavrado Acórdão, mas apenas Certidão de Julgamento, artigo 895, parágrafo primeiro, inciso IV. Mesmo as atas de audiências, como já era claro para alguns, em razão dos artigos 843 e seguintes da Consolidação das Leis do Trabalho, deverão ter “registrados resumidamente os atos essenciais”, artigo 852-F, acrescentado a mesma CLT.
Houve veto do Presidente da República à limitação dos recursos ordinários, tal como aprovado no Congresso Nacional. Restou a limitação do recurso de revista, o qual foi mantido somente para casos de “contrariedade a súmula de jurisprudência uniforme do Tribunal Superior do Trabalho e violação direta da Constituição da República” (artigo 896, parágrafo sexto).
LUCIANE CARDOSO, em comentário a esta mesma Lei, quanto a instrução probatória, observa novas possibilidades de atuação mais incisiva do Juiz: “Visto sob o prisma da apreciação da prova, a inclusão de um dispositivo que incentiva a “dar especial valor as regras de experiência comum” abre-nos um caminho interpretativo para a valoração da prova que deve ser preenchido com parâmetros de razoabilidade. Por uma “lógica do razoável” extraída da experiência humana devem ser interpretados os fatos que traduzem a realidade social concreta trazida para o processo pelo filtro probatório.
Concluindo: podemos constatar que, independentemente das críticas que possam ser feitas à Lei nº 9.957/2000 em sua totalidade, o art. 852-D da mesma lei incentiva uma postura política de incremento dos poderes instrutórios do juiz na condução do processo e aplicação justa da lei. A boa administração do dispositivo legal pelo magistrado significa impulso legitimador da atividade jurisdicional, tão necessário no momento atual.”#
Os inúmeros debates sobre esta nova Lei 9.957, que teve ato solene de promulgação, na Capital Federal, ao início do ano de 2000, apresenta outra inovação, mais profunda, quanto ao papel do juiz, que ainda está por ser melhor avaliada. FRANCISCO ROSSAL DE ARAÚJO percebeu que: “O mesmo dispositivo pode ensejar outro tipo de reflexão: tradicionalmente o ordenamento jurídico afirma que o juiz deve decidir de acordo com a lei e, somente em caso de lacunas (falta de previsão normativa para a situação de fato em questão) é que o julgador deve utilizar de outros meios para decidir o caso. Essa tradição está expressa no art. 4º da LICC e no art. 8º da CLT. O parágrafo único do art. 852-I, inverte a lógica e estabelece a prioridade da Justiça e Eqüidade na sentença e, com caráter finalístico, a relaciona com o atingimento dos fins sociais da Lei e o Bem Comum. Somente o tempo vai dizer se os Tribunais do Trabalho vão fazer frutificar essa disposição legal de caráter inovador e que permite aproximar a decisão judicial da realidade”.#
4. CEDO OU TARDE DEMAIS
Já em 1947 na Escola Nacional de Jurisprudência, posteriormente, Faculdade de Direito da Universidade Nacional Autônoma do México, EDUARDO COUTURE apresentou seu Projeto de Código de Processo Civil. Ao início, justificou a necessidade de que os princípios constassem na própria lei, propondo o quinto como sendo “o juiz deverá manter, dentro do possível, a igualdade das partes no processo”.#
No debate antes mencionado, entre outros, interviu o Professor ALBERTO TRUEBA URBINA, ponderando: “Os caçulas dos processualistas, os estudiosos do processo trabalhista, como aquele que fala neste instante, sentimo-nos profundamente satisfeitos por encontrar, no Projeto de Código, as diretrizes fundamentais que, brilhantemente, foram examinadas nesta noite. Sentimo-nos, também, estimulados, porque, precisamente, as modalidades do processo trabalhista influíram no desenvolvimento do processo civil, com seus princípios fundamentais específicos: tecnicismo, rapidez, economia, porque nele se trata nada menos que de disputas entre entidades humanas, essencialmente desiguais, como o são empregados e empregadores.
Como o direito – já se disse, aqui, de modo muito elegante – é feito para a vida, o legislador do trabalho aproximou-se mais dela, levando em conta essas desigualdades. Sabemos todos, perfeitamente bem, que, na exposição de motivos do Código de Processo Civil italiano, se afirma, de modo categórico, que as regras do processo trabalhista se estenderam ao processo civil. Quer isso dizer que os cultores do Direito Processual do Trabalho cooperaram no desenvolvimento progressivo do processo civil.#
Em sua reposta, o Professor EDUARDO J. COUTURE teceu comentários sobre a situação do Direito do Trabalho em seu país naquele momento e concluiu: “Cheguei à convicção, através de um estudo que o Professor Trueba Urbina, em seu notável livro Derecho Procesal del Trabajo, julgou de maneira extremamente generosa, de que o direito adjetivo do trabalho não deixou de pé nem um só dos princípios clássicos do Direito Processual Civil. Ele excedeu, literalmente, todos os postulados que estamos manejando para a justiça civil ordinária: a idéia de prova, em virtude dos fenômenos típicos da inversão do ônus da prova, em matéria de acidentes ou em matéria de indenização por despedida; a idéia da coisa julgada, mediante o problema da sentença coletiva; a idéia de jurisdição; a idéia relativa ao princípio de igualdade entre as partes, etc. Tudo foi ultrapassado pelas exigências do processo trabalhista.
Torno a repetir que existem, entre nós, coincidências muito profundas quanto à essência e ao destino do Direito Processual do Trabalho. Quero, apenas, esclarecer, para fugir a uma apreciação errônea por parte de quem não conheça a realidade de nosso país, que a orientação que comento poderia ser justificada, porque neste Projeto não se trata, por enquanto, de iniciativas do tipo das que preocupam ao Professor Trueba Urbina e a mim.”#
Entre nós, JOSÉ FERNANDO EHLERS DE MOURA expressou semelhantes preocupações quanto ao Direito Processual do Trabalho e Civil.# Em estudo, mais próximo às conclusões, ele observa que: “De outro lado, o mesmo insigne Carnelutti percebera a valia do princípio de se atribuir a carga da prova à parte que esteja na melhor situação para oferecê-la. Infere-se desse princípio ser irrelevante tratar-se de autor ou de réu quem deva arcar com o “onus probandi” do fato.
Daí por que o Anteprojeto de Código de Processo do Trabalho do preclaro Ministro Russomano dispõe no parágrafo único de seu art. 77, após haver adotado no “caput” do artigo o princípio de que “a prova das alegações incumbe à parte que as fizer”: “A ausência do trabalhador ao emprego fará presumir sua despedida, até prova em contrário, salvo nos casos de abandono de emprego em que o empregador tenha comunicado o afastamento do empregado à autoridade local do Ministério do Trabalho e Previdência Social, mediante documento escrito”.#
Mais recentemente, FRANCISCO ROSSAL DE ARAÚJO lembrou o “princípio de oportunidade de prova” dizendo: “As partes devem ter igualdade na oportunidade para a produção de provas. Toda a prova tornada possível a uma delas, deve ser oportunizada à outra. Esse princípio não se confunde com o ônus probatório. Na prova documental, por exemplo, a oportunidade de prova diz respeito ao momento da produção, e não ao conteúdo ou à distribuição do seu ônus. No Processo do Trabalho, o empregador tem um ônus diferente do empregado no que tange aos documentos, porque a maioria dos documentos existentes na relação de emprego são originados (feitos) pelo empregador. Nessas circunstâncias, interpretar igualdade de oportunidades como igualdade de ônus constitui profundo equívoco.”#
O Código de Defesa do Consumidor representou novos e importantes avanços, em matéria das provas. KASUO WATANABE afasta as críticas contra certo rigorismo desta Lei, principalmente quanto ao artigo 6º, inciso VIII: “O dispositivo prevê duas situações distintas: a) verossimilhança da alegação do consumidor e b) hipossuficiência do consumidor.
Na primeira situação, na verdade, não há uma verdadeira inversão do ônus da prova. O que ocorre, como bem observa Leo Rosenberg, é que o magistrado, com a ajuda das máximas de experiência e das regras de vida, considera produzida a prova que incumbe a uma das partes. Examinando as condições de fato com base em máximas de experiência, o magistrado parte do curso normal dos acontecimentos e, porque o fato é ordinariamente a conseqüência ou o pressuposto de um outro fato, em caso de existência deste, admite também aquele como existente, a menos que a outra parte demonstre o contrário. Assim, não se trata de uma autêntica hipótese de inversão do ônus da prova.
Cuidou o legislador, apesar disso, de explicitar a regra e o fez com propósitos didáticos, para lembrar aos operadores do Direito, não muito propensos a semelhante critério de julgamento, que é ele inafastável em processos que tenham por conteúdo o direito do consumidor. E há, no dispositivo, também a lembrança de que, tratando-se de tutela do direito do consumidor, deve ser utilizado com mais freqüência regra inscrita no art. 335 do Código de Processo Civil.
Na segunda situação, que é a da hipossuficiência, poderá ocorrer, tal seja a situação do caso concreto, uma verdadeira inversão do ônus da prova”.#
O renomado processualista, mais adiante, quanto ao momento de aplicação da regra de inversão do onus da prova relata o debate, posicionando-se com maior cautela.# Em obra anterior, quase contemporânea ao Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990, JOSÉ ROBERTO DOS SANTOS BEDAQUE, também, sustenta que “as regras relativas à distribuição do ônus da prova devem ser levadas em conta pelo juiz apenas e tão-somente no momento de decidir”.# ALEXANDRE FREITAS CÂMARA acredita estar tratando-se de “regras de julgamento”, relacionando o tema com o “princípio da comunhão” das provas, ou seja, no momento em que estão sendo produzidas passam a integrar os autos, tendo menor relevância saber-se de quem é o ônus.#
Na prática perante a Justiça do Trabalho, tem sido cada vez mais frequente a tentativa de ouvida das testemunhas conforme o ônus das partes, em ordem, ou seja, primeira as da reclamada, principalmente quando se examina alegação de justa causa. Na verdade, o próprio artigo 765 da Consolidação das Leis do Trabalho afirma um poder de direção do processo ao juiz mais amplo que o CPC. Falta, de qualquer modo, uma melhor definição do tema, talvez até em lei, porque existirão inúmeras consequências deste outro entendimento. Eventualmente, este novo avanço somente venha a ser viável quando o mesmo debate for mais intenso na Justiça Comum.
CONCLUSÃO
O mencionado Professor BEDAQUE, Desembargador em São Paulo, noticia uma tendência visível fora de nosso País quanto ao papel do Juiz, em matéria das provas. Ele afirma que: “A concepção de que o reforço da autoridade do juiz, que dá origem ao chamado processo inquisitivo, corresponde a regimes não democráticos de governo, é absolutamente equivocada. Aquilo que se convencionou chamar de processo acusatório, onde os poderes de iniciativa das partes são levados a extremos, resulta de um individualismo politico e filosófico já ultrapassado, pois não atende à realidade socioeconômica do Estado moderno, cuja atividade é toda voltada para o social.”#
O reconhecimento de que os magistrados também vivem em sociedade, onde inclusive exercem a cidadania, recolhendo um certo conhecimento da realidade, não pode deixar de ser considerado nos dias atuais. O Juiz do Trabalho em São Paulo, JORGE LUIZ SOUTO MAIOR constatou que as decisões judiciais não podem mais se deslocar “daquilo que muitas vezes já é do conhecimento geral”.#
Pensando-se com mais profundidade, percebe-se que “será parcial o juiz que deixar de determinar, de ofício, a produção de certa prova, pois, nesse caso estará favorecendo a parte a quem tal prova seria prejudicial”, como afirma ALEXANDRE FREITAS CÂMARA.# Analisando os atuais rumos do direito probatório, OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA propõe, até mesmo, uma diferente utilização dos diversos meios de prova, privilegiando-se a inspeção judicial.#
Acredita-se, então, na necessidade e possibilidade de muitos novos avanços dos estudos sobre tema. Certamente, em breve, poder-se-á estar em melhores condições de bem compreender e mais transformar a realidade, bem como, em alguns instantes, quase só observá-la, como diz a canção: “NÃO: NÃO DIGAS NADA – Secos e Molhados”
Não: não digas nada
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já
É ouvi-lo melhor
Do que o dirias
O que és não vem à flor
Das frase e dos dias
És melhor do que tu
Não digas nada, sê
Graça do corpo nu
Que invisível se vê”