Caderno 08
Apresentação
É com grande satisfação que apresentamos a oitava edição do nosso “Cadernos da AMATRA IV”, recheada de artigos atuais e interessantes.
Agradecemos a colaboração daqueles que enviaram seus trabalhos para serem divulgados por meio desse importante veículo de troca. Aproveitamos para renovar nosso pedido de colaboração constante, para que os Cadernos continuem tendo a profundidade já reconhecida nas edições anteriores.
Neste exemplar, iremos acompanhar as reflexões acerca da ampliação de competência, vista após os três primeiros anos de alteração do art. 114 da Constituição Federal.
A Constituição Federal também merece destaque especial, em homenagem aos seus vinte anos, seja através de um exame direto de sua eficácia prática, seja por meio de estudos sobre a tutela de proteção à saúde do trabalhador.
A reafirmação dos direitos fundamentais trabalhistas assume função ainda mais importante para nós, operadores do direito, nesse cenário de alterações constantes, de revisão de conceitos e de crise estrutural. O princípio da proteção, cerne do direito do trabalho, vem reforçado como premissa básica para a aplicação das normas trabalhistas.
Os artigos aqui divulgados são resultado de estudos aprofundados de colegas que – como todos nós – estão sempre preocupados em melhorar a eficácia da tutela jurisdicional que prestamos. Essa é a nossa função enquanto parcela do Poder Judiciário. Essa é a nossa missão como juízes. Por isso, é importante prestigiar as pessoas que dedicam uma parcela importante do seu precioso tempo para refletir e dividir com os colegas o fruto de suas inquietações.
A oitava edição do nosso “Cadernos da AMATRA IV” é um presente para todos nós. Saboreiem sem moderação!
Luiz Antonio Colussi
Presidente da AMATRA IV
ARTIGO 114 DA CONSTITUIÇÃO – TRÊS PRIMEIROS ANOS DA COMPETÊNCIA AMPLIADA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Ricardo Carvalho Fraga
Juiz do Trabalho no TRT 4ª R – RS
SUMÁRIO
Introdução
1. Resistência Inicial e Jurisprudência Atual
2. Alterações na Constituição
3. Acidentes de Trabalho
4. Indenizações por Dano Moral
5. Consumo de Produtos e Serviços
6. Servidores e Trabalhadores em Entes Públicos
Conclusões
INTRODUÇÃO
Ao completaram-se os três primeiros anos da competência ampliada da Justiça do Trabalho, introduzida com a Emenda Constitucional 45, de 08 de dezembro de 2004, muitos são os avanços e não poucas as resistências. As primeiras manifestações, em decisões e debates, revelando dúvidas e temores, diante da nova realidade, já estão quase superadas.[1]
Restam o aprimoramento necessário e a efetiva opção, de todos, por novos rumos para as relações de trabalho. E, isto, ocorre no País, provavelmente com alguma inovação, ainda que sem completo ineditismo, no mundo civilizado.[2]
Sabe-se que o atual art. 114 já tem nove incisos. Outros três, basicamente sobre multas e tributos, prosseguem tramitando da Câmara dos Deputados, após modificações no Senado. Lá, no restante do texto, constam inúmeros outros temas da inconclusa “Reforma do Poder Judiciário”. De qualquer modo, quanto à competência, as transformações atuais já merecem “aplauso” e a efetiva confirmação, séria e atenta. [3]
1. RESISTÊNCIA INICIAL E JURISPRUDÊNCIA ATUAL
Quase mil juízes do trabalho estiverem presentes em Seminário organizado pela Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho, logo em março de 2005, em São Paulo. Tal número de presentes representava um terço destes profissionais. Não seria exagero dizer que parcela bem expressiva da platéia daquele Evento “não desejava comemorar” a competência ampliada.[4]
Não foram poucos os conflitos de competência suscitados por juízes de todos os graus. Por curioso e significativo de um tempo já ultrapassado, recorde-se que o conflito de competência, sobre indenizações por danos decorrentes de acidentes de trabalho, foi apresentado pelo próprio Tribunal Superior do Trabalho. O passar do tempo e o choque com a realidade da organização do Poder Judiciário, nos diversos Estados, tem levado a magistratura trabalhista a uma postura mais positiva.
Relevante, ao final de 2007, foi a “Jornada”, organizada pela ANAMATRA, com apoio da Escola Judicial do Tribunal Superior do Trabalho e do Conselho de Escolas da Magistratura do Trabalho. Neste Evento, foram aprovados setenta e nove “enunciados”, sendo vários deles confirmando a nova competência. Provavelmente mais significativos são os de número 8 (falência e controvérsia sobre sucessão), 23 (cobrança de honorários de advogado), 24 (conflitos inter e intra-sindicais), 36 (ação ajuizada por herdeiros), 63 (jurisdição voluntária para liberação de FGTS), 64 (prestação de serviço por pessoa física), e 60, cujo primeiro item merece transcrição:
“Interdição de estabelecimento e afins. Ação direta na Justiça do Trabalho. Repartição dinâmica do ônus da prova. I – A interdição de estabelecimento, setor de serviço, máquina ou equipamento, assim como o embargo de obra (art. 161 da CLT), podem ser requeridos na Justiça do Trabalho (art. 114, I e VII, da CRFB), em sede principal ou cautelar, pelo Ministério Público do Trabalho, pelo sindicato profissional (art. 8º, III, da CRFB) ou por qualquer legitimado específico para a tutela judicial coletiva em matéria labor-ambiental (arts. 1º, I, 5º, e 21 da Lei nº 7.347/85), independentemente da instância administrativa”.[5]
No momento em que escrevem as presentes linhas, é visível que o núcleo de menor compreensão da nova realidade está quase que limitado ao Superior Tribunal de Justiça, mesmo aí havendo novas manifestações. Recentemente, sendo Relator o Ministro Ari Pargendler, afirmou-se a competência da Justiça do Trabalho, até mesmo, em caso pouco habitual, de danos resultantes de furto de veículo deixado em pátio da empresa.
2. ALTERAÇÕES NA CONSTITUIÇÃO
Para a mais perfeita compreensão dos novos passos, é relevante lembrarmos as alterações constitucionais. Antes de 1988, a competência da Justiça do Trabalho era definida em razão das partes em litígio, ou seja, “empregadores e empregados”. Em 1988, ocorreu significativa alteração, para “empregadores e trabalhadores”. Esta alteração, por si só, poderia ter suscitado transformações mais profundas. Mesmo fora da jurisprudência, todavia, são escassas as manifestações ressaltando a alteração.[6]
Ao final de 2004, com a Emenda Constitucional que se examina, ocorreu a modificação, sobre a qual ninguém mais pode silenciar ou tentar impedir que se desenvolva. Oportuno que se registre a anti-regimental tentativa de substituição da expressão “relação de trabalho” por “relação de emprego”, após a votação nas Comissões e às vésperas do exame em Plenário da Câmara dos Deputados. Além de restrição, quanto à competência anterior, haveria incoerência com diversos incisos do mesmo artigo. Finalmente, a competência passou a ser definida em razão da origem dos litígios, ou seja, a “relação de trabalho”.
Ora, os conceitos de “relação de trabalho” e de “relação de emprego” são bem diversos. Tampouco é debate novo ou inconcluso. A primeira expressão é bem mais ampla. Sabemos disto deste os primeiros estudos sobre a melhor denominação do próprio Direito do Trabalho, como um todo.[7] Ademais, mesmo nas relações de trabalho, sem emprego, há necessidade de regramento mínimo.
Fazendo, aparentemente, menor uso da razão, poder-se-ia imaginar que as alterações da Emenda Constitucional 45, sobre a competência ampliada da Justiça do Trabalho, já eram possíveis desde 1988. Acaso tivéssemos sido mais dedicados e positivamente deslumbrados, poderíamos ter traçado os atuais passos no exato instante da simples alteração da palavra “empregados” por “trabalhadores”, em 1988.
Acaso fossemos bem mais ousados, desde lá, poderíamos ter, no mínimo, iniciado a construção, senão a definitiva confirmação, das atuais compreensões. De qualquer modo, os atuais avanços permitem acreditar que, em algum momento, nos entregaremos ao debate, de modo bem mais apaixonado e muito mais sábio, contribuindo para que a roda da história gire mais intensamente, tal como necessitam milhões de brasileiros, empregados uns poucos e trabalhadores outros muitos.
3. ACIDENTES DE TRABALHO
Os acidentes de trabalho, além das ações contra a Previdência Social, na Justiça Comum, têm levado os trabalhadores a propor ações contra o empregador, com pedido de indenização pelos danos moral e material conseqüentes.
O Supremo Tribunal Federal entendeu que estas são da competência da Justiça do
Trabalho. O referido julgamento ocorreu no Conflito de Competência 7.204-1, originário de Minas Gerais, no qual o Relator o Ministro Carlos Ayres de Brito afirmou que:
“20.Tudo comprova, portanto, que a longa enunciação dos direitos trabalhistas veiculados pelo art. 7o da Constituição parte de um pressuposto lógico: a hipossuficiência do trabalhador perante seu empregador. A exigir, assim, interpretação extensiva ou ampliativa, de sorte a autorizar o juízo de que, ante duas defensáveis exegeses do texto constitucional (art. 114, como penso, ou art. 109, I, como tem entendido esta Casa), deve-se optar pela que prestigia a competência especializada da Justiça do Trabalho. 21.Por todo o exposto, e forte no art. 114 da Lei Maior (redações anterior e posterior à EC 45/04), concluo que não se pode excluir da competência da Justiça Laboral as ações de reparação de danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente de trabalho, propostas pelo empregado contra o empregador. Menos ainda para incluí-las na competência da Justiça comum estadual, com base no art. 109, inciso I, da Carta de Outubro”.
Provavelmente estejamos no rumo de mais fortemente enfrentar os vergonhosos números dos acidentes de trabalho no País. Igualmente, cada vez mais, percebe-se que se exige um tratamento mais próximo dos demais aprendizados do direito social, como um todo.[8] Por outro lado, no mínimo, o art. 927 parágrafo único do novo Código Civil deve ser interpretado com o cuidado e interesse que merece tal avanço do Direito “Privado”, completamente harmônico e coerente com o texto constitucional.
Acrescentaremos algumas observações, algumas linhas adiante, quanto ao “expressivo, todavia, não excessivo número” destas demandas. Faremos isto ao tratarmos das ações sobre indenização por dano moral, de um modo geral. Igualmente, indica-se, desde logo, algum debate que se impõe, com o deslocamento da competência, especialmente relativo ao instituto da prescrição.
Jorge Luis Souto Maior chega a sustentar que a matéria relativa à indenização por danos decorrentes de acidentes de trabalho está num patamar distinto do Direito Civil e do próprio Direito do Trabalho. Para tanto, lembra que a primeira lei sobre acidentes de trabalho, no País, é anterior ao Código Civil de 1916. Diz que se impõe um tratamento diferenciado e cuidadoso do tema.[9] Magda Barros Biavaschi, igualmente, percebeu que o tema não tem solução satisfatória no atual momento, sendo cabível um total re-pensar do tema.[10]
Note-se que, muitas demandas foram apresentadas perante a Justiça Comum e estavam a salvo da prescrição, considerando-se o prazo do Código Civil anterior ou, no mínimo do atual, observando-se, ainda, o art. 2028 do mesmo. Por outro lado, para as futuras ações, provavelmente, a prescrição “trabalhista” possa ser mais benéfica aos acidentados, eis que obedecido o prazo de dois anos para ajuizamento, haveria o prazo de cinco, que é mais dilatado do que o previsto no novo Código Civil, de três anos.
No atual momento, o Tribunal Superior do Trabalho, ainda, tem decisões em diversos sentidos.[11] Talvez, não seja absurdo imaginar que venha a ser construída uma solução “transitória”. Os processos anteriores, ajuizados perante a Justiça Comum, teriam este tratamento especial e seria adotada a prescrição trabalhista para os novos processos. Em ambos os casos, sempre cuidando para que o início da contagem seja a partir da efetiva ciência da lesão.
4. INDENIZAÇÕES POR DANO MORAL
Os temas mais freqüentes na Justiça do Trabalho, por último, provavelmente, têm sido aqueles relativos às indenizações por dano moral e material, decorrentes das condições nas quais se desenvolve a relação de trabalho. Para tanto, tem-se o inciso VI do art. 114 da Constituição. Não são apenas os acidentes de trabalho. São, igualmente, os inúmeros desacertos do cotidiano, no local de trabalho, para os quais vale registrar a Súmula 392 do Tribunal Superior do Trabalho.
A mencionada Súmula 392 do Tribunal Superior do Trabalho já expressava o entendimento de que a competência para tais controvérsias e conseqüentes indenizações é da Justiça do Trabalho, salvo para acidentes de trabalho, anteriormente ao mencionado julgamento no Conflito de Competência 7204-1, pelo Supremo Tribunal Federal.[12]
Já apontamos, algumas linhas antes, que são bem expressivos os números destes pleitos. Em outro estudo, sob o título “Dano Moral – inúmeras mas não excessivas ações”, buscamos demonstrar que o atraso social é que dita esta grandiosidade dos números de litígios.[13] Não poderia ser muito diferente neste País, que tanto tardou em a abolir a escravidão, mesmo quando esta já era prejudicial às relações econômicas. Em uma sociedade ainda tão limitada, do ponto de vista de civilidade, cada empresa e ambiente mais restrito contém as mesmas ausências de democracia.[14] As providências transformadoras se impõem.
Hoje, já se passaram quase vinte anos da Constituição de 1988. Os avanços do novo Código Civil, igualmente, abriram novos horizontes. Estamos mais habilitados para visualizar a possibilidade de uma maior “sociabilidade”. Vale meditar sobre os arts. 187 e 421 do novo Código, relativamente ao conceito mais amplo de “ato ilícito” e “função social do contrato”.
Pontes de Miranda, antes mesmo destes textos legais e constitucionais, tratando de tema mais específico, chegou a perceber que “Com a teoria dos direitos de personalidade, começou, para o mundo, nova manhã do direito”, acrescentando que “a certo grau de evolução, a pressão política fêz os sistemas jurídicos darem entrada a suportes fácticos que antes ficavam de fora, na dimensão moral ou na dimensão religiosa. É isso o que os juristas dizem quando enunciam que só há bem da vida, relevante para o direito, se o direito objetivo tutela”.[15]
5. CONSUMO DE PRODUTOS E DE SERVIÇOS
Não foi pequena e ainda existe controvérsia sobre a competência para as “relações de consumo”. Indicamos, algumas linhas antes, o Enunciado 64 de recente “Jornadas” organizada pela ANAMATRA. A dificuldade de alguns está no fato de que o Código de Defesa do Consumidor, para definir o consumo de serviços, utiliza, como excludente, um conceito dentro de outro. Diz o art. 3º, § 2º, desta Lei nº 8.078, que “serviço é qualquer atividade (…) salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.
A disposição do Código de Defesa do Consumidor, antes transcrita parcialmente, passou a gerar dúvidas, em alguns muitos, com a nova competência da Justiça do Trabalho. Estamos entre aqueles que não tentam frear esta ampliação, aceitando-a inclusive. Antonio Alvarez da Silva diz que:
“Vê-se claramente o parentesco social e econômico de ambos. Agora, submetidos a jurisdição única, terão condições de melhor se defenderem. Agora, diante da nova redação do art. 114, I, da CF – ações oriundas da relação de trabalho –, a relação de consumo de prestação de serviço foi indiscutivelmente atraída para a competência trabalhista, pois se trata de relação de trabalho que, a exemplo das demais, se enquadra na nova competência trabalhista. (…) Há, pois, uma identidade histórico-filosófica entre estes dois ramos da Ciência do Direito – Direito do Consumidor e do Trabalho –, porque os atores, que neles figuram como objeto, são historicamente carecedores de tutela jurídica no mundo capitalista moderno. (…) Já ouvimos o argumento de que a produção de bens e a prestação de serviços, dois lados integrados e harmônicos da atividade econômica, ficariam sujeitos a jurisdições diversas, com prejuízo do tratamento jurídico que deveriam receber. (…) Essa quebra de dualidade, entretanto, não existe. Embora fatores da atividade econômica, gênero que os envolve, há uma notável diferença entre produzir e prestar serviços, ou seja, entre produto e serviço”.
De certo modo, estamos diante de embate não muito distinto daquele sobre o nascimento do Direito do Trabalho, distanciando-se da antiga figura de locação de serviços. Prossegue o mesmo autor, Juiz do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais:
“Finalmente, é preciso ficar bem claro que a Justiça do Trabalho tem mais condições de prestar melhor proteção ao consumidor do que a Justiça Comum. Por exemplo, em Belo Horizonte, há 35 Varas, que podem tomar reclamação trabalhista de consumidores. Ao passo que, na Justiça Comum, só existe um juizado especializado em relações de consumo. (…) Vê-se que tudo favorece a integração do Direito do Trabalho com o Direito do Consumidor em uma única jurisdição. (…) Dessa união sairão ganhando o consumidor, o trabalhador e o país”.[16]
Quanto a honorários de advogado, o Superior Tribunal de Justiça já vinha entendendo não se tratar de relação sujeita ao sistema do Código de Defesa do Consumidor.[17] Por último, ao final de 2007, o Tribunal Superior do Trabalho, acolheu ser competência da Justiça do Trabalho, em julgamento que foi Relator o Ministro Ives Gandra Martins Filho.[18]
6. SERVIDORES E TRABALHADORES EM ENTES PÚBLICOS
No exato momento de publicação da Emenda Constitucional 45, criou-se situação bem curiosa. Ocorre que já era habitual que se considere aprovada uma lei ou mesmo emenda constitucional “por partes”, após votações coincidentes nas duas casas do Congresso, ficando as alterações para a restante tramitação na Câmara ou Senado, conforme o caso. Na mencionada reforma do Poder Judiciário, a competência ampliada da Justiça do Trabalho alcançava todos os trabalhadores, sem a restrição dos servidores. O Senado Federal aprovou o acréscimo, o qual, na verdade, era restritivo, ao dizer “salvo os servidores”.[19]
Em Ação Direta de Inconstitucionalidade apresentada pela Associação dos Juízes Federais, foi deferida liminar pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, naquela época o Ministro Nelson Jobim. Os litígios envolvendo servidores permanecem, por ora, na Justiça Federal. A tramitação desta Ação prossegue, sendo Relator o Ministro Cezar Peluso. Registre-se que inexistiu maior controvérsia, ao tempo da liminar mencionada.
Bem diversa foi outra situação mais distante no tempo. Recorde-se que foi mais acirrado o debate, ao tempo do art. 240 da Lei nº 8.112, Regime dos Servidores Públicos. O Congresso Nacional chegou a derrubar o veto presidencial, havendo posterior julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal e, por último, a Lei nº 9257 de 1997, sobre o tema.
Cuidava-se, inicialmente, de os servidores públicos terem a possibilidade de ajuizamento de dissídios individuais e, acima de tudo, coletivos, na Justiça do Trabalho. Agora, não se tem travado tal debate. De qualquer modo, assinale-se que em outros Países, existe, sim, negociação coletiva dos servidores públicos, com algum regramento especial quanto aos reajustes salariais, analisados em conjunto pelo Parlamento.[20]
Freqüente tem sido a presença dos Órgãos Públicos, inclusive, não raro, da Administração Direta, em controvérsias sobre trabalhadores irregularmente contratados. Trata-se dos casos nos quais é alegado motivo para a contratação “temporária” e “precária”. Por óbvio, para examinar a existência ou não de tal exceção, a competência é da Justiça do Trabalho. Neste sentido, já se posicionou o Ministro Carlos Ayres Britto, ao negar liminar pretendida pelo Estado de Sergipe. [21]
Estes contratos, pretensamente “de cunho administrativo”, terminam recebendo tratamento bem semelhante daqueles outros nos quais existe a clara adoção do regime da Consolidação das Leis do Trabalho. Em um e outro caso, existe a quase-reconhecida ilegalidade, por ausência de concurso para ingresso, em descumprimento ao art. 37 da Constituição. Aqui, lembre-se o entendimento restrito e, provavelmente, insuficiente, do Tribunal Superior do Trabalho, quanto a “nulidade” de tais contratos, expresso na súmula 363, a qual já teve mais de uma redação.[22]
Não são raros os casos nos quais são enviados ofícios ao Tribunal de Contas para eventuais providencias relativamente ao administrador que assim “contrata”, em quaisquer das duas situações antes referidas. Exatamente, neste ponto, vale indicar que já se fala, como Juarez Freitas, que estes servidores e trabalhadores, assim como toda a sociedade tem o direito fundamental a uma “boa administração pública”.[23]
CONCLUSÕES
Em alguns itens dos vários temas anteriores, tão somente, apontamos o debate que se iniciou e a convicção de que estão inconclusos. Entre estes, acima e tudo, o exame das regras sobre a prescrição a ser considerada nas ações de indenização por danos decorrentes de acidentes de trabalho. Em outras várias linhas, buscamos retratar que a resistência inicial de juízes e de outros profissionais já está quase completamente superada.
Todos nós, da comunidade jurídica, fomos demasiadamente lentos na leitura e compreensão do texto da Constituição de 1988. O rumo indicado pela Emenda 45 de 2004 já poderia ser visto pelo observador mais atento. No mínimo, impõe-se menor lentidão neste segundo momento histórico.
O julgamento e enfrentamento dos acidentes de trabalho pode estar levando o Direito do Trabalho a um revigoramento, comparável ao seu nascimento. Agora, estamos muito mais próximo do Direito Constitucional, e não tão distante do Direito Civil, o qual igualmente apresenta inovações.
Os entes públicos, assim como os empregadores privados, cada vez mais, obrigam-se, com todos, a um tratamento superior de seus trabalhadores e servidores.
Em todas as áreas do Direito se evitam os desatinos daqueles que pregam a ausência de regras, como bem já observou Carmen Lucia Antunes da Rocha, agora integrante do Supremo Tribunal Federal, ao dizer que “o liberalismo atual não quer o Direito, não pode com ele, não sobrevive se o homem puder ter a sua dignidade insculpida no sistema normativo fundamental e assegurada pela estrutura institucional”.[24]
Alguns, na verdade, não conseguem conviver com nenhuma limitação e/ou ponderação, salvo aquelas que lhes tragam maior riqueza individual e brutalidade social, o que não mais se admite. Para a imensa maioria, os pontos de chegada ainda não foram totalmente definidos, mas o caminho já foi escolhido. É o indicado desde 1988.
[1] Recorde-se que a bela coletânea organizada pela Associação Brasileiras de Advogados Trabalhistas-ABRAT não trazia a totalidade de seus capítulos com uma visão positiva da nova realidade, sendo freqüente ver-se o argumento de que a Justiça do Trabalho perderia seu “foco” central e sua “especificidade”, especialmente, pp. 218 e 220. Trata-se da obra coletiva coordenada por Benizete Ramos de Medeiros. A Emenda Constitucional 45 de 2004 – uma visão crítica pelos advogados trabalhistas. São Paulo: LTr, agosto de 2006.
[2] Em outro texto, Avanços Parciais e Novas Lacunas, Revista Justiça do Trabalho, Porto Alegre: HS Editora, nº 284, pp. 13/18 apontamos vários “pontos específicos” nos quais se aprimora a legislação trabalhista, bem como indicamos o denominado Livro Verde, da Europa, sobre o conceito de “flexisegurança”, encontrado, este, no site www.ex.europa.eu/yourvoice/consultations acessado em julho de 2007.
[3] Nestas linhas, deixaremos de abordar as questões inter e intra-sindicais, o que já fizemos em outro momento
com Luiz Alberto de Vargas, no texto Relações Coletivas e Sindicais – nova competência após a EC 45 divulgado na coletânea organizada pela ANAMATRA “Justiça do Trabalho: competência ampliada”. São Paulo: LTr, 2005.
[4] As primeiras resistências a nova realidade levaram o ex-Presidente da ANAMATRA, Hugo Cavalcanti Melo Filho, a expressar adjetivo bem forte quanto a este comportamento inicial. Referiu tratar-se de “interpretação reacionária” a resistência inicial à competência ampliada, in ANAMATRA. “Justiça do Trabalho: competência ampliada”. São Paulo: LTr, 2005, pp. 170/186. A outra e anterior coletânea organizada pela ANAMATRA é Nova Competência da Justiça do Trabalho, São Paulo: LTr, janeiro de 2005, sendo Coordenadores Grijalbo Fernandes Coutinho e Marcos Neves Fava.
[5] Estas Jornadas, realizadas em dezembro de 2007 estão noticiados no site www.anamatra.org.br acessado em dezembro de 2007, havendo, além dos 79 Enunciados, as Teses que lhes foram preparatórias, algumas delas.
[6] No estudo “Primeiros e Anteriores Debates – ampliação da competência da Justiça do Trabalho”, conseguimos mencionar apenas Tarso Genro e Paulo Schmidt. Este artigo, do signatário, foi publicado na Revista do Tribunal Superior do Trabalho, Brasília: volume 71, número 2, maio/agosto de 2005, p. 108/115, bem como outras Revistas e vários Portais Jurídicos.
[7] Entre tantos estudos sobre o tema, recorde-se o de Mauro Schiavi. O alcance da expressão “relação de trabalho” e a competência da Justiça do Trabalho um ano após a promulgação da EC 45/04. Revista LTr, São Paulo: LTr, vol 70, número 2, fevereiro de 2006, pp. 208/221.
[8] Neste sentido são os estudos dos Juízes do Trabalho Sebastião Geraldo de Oliveira e Cláudio Brandão, valendo destacar a atuação firme e positiva do primeiro nos debates contemporâneos ao julgamento do conflito de competência antes mencionado, in Sebastião Geraldo de Oliveira. Indenizações por Acidente de Trabalho ou Doença Ocupacional. São Paulo: LTr, dezembro 2005 e Cláudio Brandão. Acidente de Trabalho e Responsabilidade Civil do Empregador. São Paulo: LTr, fevereiro de 2006.
[9] Jorge Luis Souto Maior. A Prescrição para Pleitear Indenização por Dano Moral e Material decorrente de Acidente de Trabalho. Revista Justiça do Trabalho, Porto Alegre: HS Editora, 2006.
[10] Magda Barros Biavaschi. A Prescrição nas Relações do Trabalho. Coordenadores José Luciano Castilho Pereira e Nilton Correia. São Paulo: LTr e ABRAT, 2007, capítulo O Direito do Trabalho e Prescrição: Fundamentos. pp. 106/126.
[11] Esta observação sobre decisões diferenciadas do TST, quanto a prescrição, é feita em dezembro de 2007.
[12] A Súmula 392 é a conversão da anterior Orientação Jurisprudencial 327, no mesmo sentido. Antes do julgamento do Conflito de Competência 7204, referido no corpo do presente texto, este entendimento não alcançava os danos resultantes de acidentes, para a maioria da jurisprudência, todavia, já havendo manifestações que os incluíam, tal como de Paulo Emilio Ribeiro de Vilhena, in Revista do TST, Vol. 67, nº 2, abril/junho/2001.
[13] O texto Dano Moral – inúmeras mas não excessivas ações foi elaborado para debate organizado pelo Sindicato dos Advogados do Espírito Santo, em novembro de 2006, estando publicado em conjunto com Dea Cristina Teixeira Oliveira, na Revista Jurídica da AMATRA do Espírito Santo, Vitória: outubro de 2006, pp. 101/104, além de alguns Portais Jurídicos e no endereço http://br.geocities.com/rcarvalhofraga/blog.html acessado novamente em dezembro de 2007.
[14] Trata-se do site www.assediomoral.org acessado em dezembro de 2007, o qual sintetiza esforço de muitos profissionais de diversas áreas sociais.
[15] Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, Tomo VII, pp. 6 e 7.
[16] Antonio Álvares da Silva. Pequeno Tratado da Nova Competência Trabalhista. São Paulo: LTr, outubro 2005, p. 394 e seguintes.
[17] Superior Tribunal de Justiça, Acórdão Resp. 539.077, publicada em 30.05.2005, Relator Ministro Aldir Passarinho Junior.
[18] Tratou-se de Decisão da recém criada 7ª Turma do TST, ao final de 2007, RR nº 763/2005-002-04-00.4.
[19] O acréscimo-supressivo ainda não foi apreciado na Câmara dos Deputados, o que poderá ocorrer na tramitação do restante da PEC 29-A, o que ainda não aconteceu até o final de 2007.
[20] Ricardo Carvalho Fraga. Direito e Castelos. São Paulo: LTr, novembro de 2002, p 9.
[21] Tratava-se da RCL 4208, interposta pelo Estado de Sergipe, alegando que a ADIn 3395 alcançaria também esta situação.
[22] No Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul, são inúmeros os julgamentos, entre outras da 3ª Turma, “com visão mais ampla” de tal manifestação jurisprudencial, com a finalidade de assegurar a “reparação mais ampla possível do trabalho já prestado”.
[23] Juarez Freitas. Discricionaridade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 47, principalmente quanto ao “dever de motivação dos atos administrativos”.
[24] Carmen Lucia Antunes da Rocha. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a Exclusão Social. Revista Interesse Público, Porto Alegre: Editora Notadez, nº 4, 1999, pp. 23/48.
A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A LENTE INVERTIDA DE QUEM APLICA O DIREITO DO TRABALHO
Valdete Souto Severo
Juíza do Trabalho Substituta do TRT 4ª R – RS
A Constituição Federal está fazendo vinte anos. Nosso pacto que justifica e impõe limites à ordem consolidada, constituindo verdadeira metáfora da democracia substancial, legitima o exercício de um direito de resistência[1]. Isso porque o denominado paradigma da democracia constitucional se estabelece justamente a partir da premissa de que o texto constitucional é o valor fundante de determinado momento histórico-social. Traz o núcleo de direitos inatingíveis para que determinado Estado possa realizar seu objetivo de regulação das relações inter-individuais.
Daí falar-se em garantismo, como conseqüência lógica da concepção de constituição como pacto social de um Estado Democrático de Direito. Por garantismo[2], entende-se a necessidade de observar um conjunto de regras rígidas acerca da proteção do que se convencionou denominar “mínimo existencial”. Regras capazes de garantir a eficácia dos direitos humanos fundamentais e impedir o retrocesso social.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 é marcada pela idéia de supremacia dos direitos fundamentais e de sua intangibilidade. Já em seu artigo primeiro, nossa carta social refere que o Brasil constitui um Estado Democrático de Direito, tendo entre seus fundamentos “a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”. Marca, portanto, a passagem da concepção jurídica racionalista, para a visão do homem sob a ótica de sua relação com seus pares, ou seja, em sua dimensão plural. Nesse sentido, o novo pacto inverte a lógica do raciocínio individualista[3], rompendo com o paradigma liberal.
A adoção da solidariedade, da justiça, da valorização do trabalho e da dignidade humana como parâmetro do ordenamento jurídico determina que as regras sejam examinadas sob a ótica da coletividade, sem que se perca de vista o ser humano.
Sua importância reside no fato de que conferem eficácia jurídico-positiva à noção natural de dignidade humana[4]. Implica concluir, segundo Ingo Wolfgang Sarlet, tenha-se, na proposição de respeito à dignidade humana, uma norma jurídica de dupla dimensão: é princípio (mandado de otimização) e regra (a ser aplicada de modo concreto mediante ponderação com outros princípios) ao mesmo tempo[5]. A dignidade humana assume função de critério para a construção do conceito de direitos fundamentais[6], bem como para a aferição da incidência de uma proibição de retrocesso[7], que é o que particularmente nos interessa nesse estudo.
Como observa Ingo Wolfgang Sarlet “eventuais medidas supressivas ou restritivas de prestações sociais implementadas” deverão ser consideradas inconstitucionais por violar o princípio de proibição de retrocesso “sempre que com isso restar afetado o núcleo essencial legislativamente concretizado dos direitos fundamentais”, sobretudo quando “resultar uma afetação da dignidade da pessoa humana […] no sentido de comprometimento das condições materiais indispensáveis para uma vida com dignidade, no contexto daquilo que tem sido batizado como mínimo existencial”[8].
O trabalho como condição inerente à vida humana constitui expressão dessa nova realidade[9]. As regras trabalhistas, sobretudo aquelas decorrentes das normas contidas no art. 7º da Constituição Federal, se coadunam com a conceituação de direitos fundamentais sociais. É exatamente por isso que o valor-trabalho é elevado ao status de princípio fundamental do nosso Estado Democrático de Direito e precisa ser visto sob nova dimensão[10].
A Constituição brasileira, a exemplo de outras constituições[11], deixa clara a supremacia dos direitos fundamentais em relação aos direitos patrimoniais, elencando aqueles como elementos essenciais da República Federativa do Brasil. Assim, o que o constitucionalismo, e o garantismo que lhe é inerente, pretendem em realidade assegurar é uma nova visão do direito. Uma visão a partir dos direitos fundamentais. Uma visão contaminada pela idéia de que existe um núcleo essencial de direitos que constitui a base sem a qual não há falar em sociedade democraticamente organizada.
Lênio Streck observa que com a Nova Carta Constitucional de 1988 institucionalizamos a virada hermenêutica pela qual a linguagem, de terceira coisa, passa a ser a “condição de possibilidade”[12].
A concepção da linguagem como condição de possibilidade e não como mero veículo ou instrumento, já era percebida por Aristóteles, segundo o qual julgamento não é função da linguagem, mas da alma.[13] Por isso, quando expressamos algo, “já estamos junto às coisas sobre que falamos”.[14]
Por muito tempo insistimos em conceber a linguagem como mero instrumento, permitindo, com isso, interpretações dissociadas de um contexto histórico. O trabalho. A dignidade humana. A dimensão plural do Homem. Tais conceitos precisam ser devolvidos à história. Enquanto não compreendermos a concepção histórica do indivíduo que interpreta e dos pré-juízos que ele forma a partir de suas vivências, teremos dificuldade – até mesmo – para identificar o retrocesso social quando da aplicação da norma ao caso concreto.
A noção de proibição de retrocesso social abarca a idéia de que a linguagem (jurídica) é condição de possibilidade que se fundamenta no discurso[15]. Isso implica entender que buscar a ‘vontade da lei’ ou a ‘vontade do legislador’ é um engodo que encerra em si a possibilidade de interpretarmos de modo incompatível com a racionalidade (de valores constitucionais) que pretendemos ver instaurada.
Continuamos a raciocinar com o paradigma liberal-individualista, pelo qual a norma não tem por finalidade, em princípio, provocar a efetiva modificação no mundo dos fatos. Continuamos buscando o ‘sentido da Lei’ e, desse modo, utilizamos a linguagem como mero instrumento desconectado da realidade histórica em que será aplicada.
A compreensão da importância do discurso como modo de ser-no-mundo é o que nos permite entender que não é possível examinar as regras jurídicas sem contextualizá-las[16]. Enquanto permanecermos contaminados por um olhar ‘de fora’ para o direito, sem perceber que nossos pré-juízos é que determinam o modo como compreendemos e aplicamos as regras, não conseguiremos superar o que alguns denominam “compreensão inautêntica do Direito”[17]. Permaneceremos atrelados aos ideais iluministas do início do Estado Moderno, pelos quais temos de perseguir a verdade unívoca do texto, tratando-o como terceira coisa que se coloca entre o sujeito e o objeto. Algo com vida própria.
Na realidade, tudo circunda a adoção dos valores que pretendemos constituam premissa para a aplicação do ordenamento jurídico. Depende da nossa ‘pré-compreensão’ do mundo.
Precisamos entender que já superamos a necessidade histórica de consolidação da ordem posta (ideal dos revolucionários burgueses). Passamos por um período negro da história mundial, em que o Homem revelou todo o seu potencial perverso (‘horror nazista’) e finalmente vimos surgir a necessidade de consolidação da democracia econômica e social como garantia da intangibilidade da dignidade humana. Pois bem. A democracia social e econômica [substancial] traz em sua gênese a proibição de retrocesso social.
Canotilho se refere à “proibição da contra-revolução social ou da evolução reacionária”[18] pela qual “os direitos sociais e econômicos (ex: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir uma garantia institucional e um direito subjetivo”[19].
A noção de retrocesso só é bem compreendida quando examinada no contexto social em que gerada. A superação do terror vivido durante os governos totalitários que se multiplicaram pelo mundo na primeira metade do Século XX determina a necessidade de que a nova ordem, pautada em valores essenciais para a garantia da dignidade do homem, seja protegida inclusive contra o indivíduo[20].
A dimensão plural do homem deve ser garantida mesmo à custa da noção humana individual de necessidade de sobrevivência ou de busca de satisfação imediata. Com essa pré-compreensão de uma necessidade histórica, forja-se a doutrina da proibição do retrocesso social, de sorte a impedir o retorno à racionalidade pela qual o homem podia ser visto como meio para o atingimento de um resultado desejado.
Com isso, a doutrina constitucional constrói a idéia de “núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana”[21]. A proibição do retrocesso gravita justamente em torno desse núcleo essencial, de sorte a justificar “a sanção de inconstitucionalidade relativamente a normas manifestamente aniquiladoras da chamada justiça social”[22].
Precisamos, pois, compreender a importância da reciprocidade, da noção histórica do homem e de sua necessidade, como membro de um grupo, de intervir de sorte a ser relevante para a comunidade em que está inserido. É claro que o raciocínio engendrado a partir de tais premissas nos levaria a considerar o fato de que uma vez aceita a noção de valorização social do trabalho humano, seria desnecessário falar em proibição de retrocesso.
A compreensão da dimensão do novo paradigma albergado pela Constituição Federal de 1988 evidencia a assunção do homem enquanto membro de uma comunidade, como destinatário e razão de ser das normas jurídicas. Isso, porém, está longe de figurar no imaginário de nossos juristas. E é justamente porque ainda estamos comprometidos com o paradigma liberal, pelo qual o indivíduo deve ter por objetivo retirar do Estado o máximo de proveito para si, independente da comunidade em que está inserido, que necessitamos da proibição de retrocesso. Em outras palavras, ainda não há um ambiente capaz de dispensar a proteção estatal, deixando ao livre arbítrio dos particulares a consolidação dos valores que a Constituição Federal de 1988 instaura. Daí a necessidade de compreendermos os direitos trabalhistas fundamentais como direitos indisponíveis, irrenunciáveis e passíveis de ampla proteção estatal, de sorte que as normas infraconstitucionais devam buscar a máxima eficácia desses direitos.
A importância da noção de proibição do retrocesso social cresce na exata medida em que percebemos a resistência do imaginário jurídico em promover os valores da Constituição Federal de 1988. A resistência em romper com o paradigma liberal-individualista. A resistência em aceitar como valor fundamental do nosso Estado Democrático de Direito a dignidade humana em sua dimensão jurídica plural.
Implica retrocesso injustificável permanecer a examinar os institutos jurídicos sob uma ótica individualista, em que a propriedade constitui valor fundamental, em detrimento, até mesmo, da função social que precisa exercer. Do mesmo modo, constitui retrocesso inaceitável examinar as normas trabalhistas sob o prisma dos direitos individuais e, principalmente, aceitar que as leis do mercado se sobreponham ao valor do trabalho humano[23].
A proibição do retrocesso no âmbito do direito do trabalho passa pela percepção de que as normas constitucionais insertas no art. 7º da Constituição Federal de 1988 não constituem mera retórica. Representam uma nova concepção do direito e como tal devem ser aplicadas. Ultrapassa-se o mito da doação de direitos elementares à classe dos trabalhadores, para se perceber que tais direitos foram conquistados e constituem a base elementar a partir da qual é possível conceber uma sociedade em que haja um razoável equilíbrio entre as forças de produção – já que não se pode esquecer que vivemos em um estado regido pelo modo capitalista de produção.
O movimento pendular próprio da História deve sempre avançar. Por isso, em lugar de um Estado-providência, vivemos a tentativa de consolidar um Estado Constitucional, que se fundamenta no homem como cidadão, tendo, pois, duplo suporte, formado por “soberania popular e dignidade humana”[24]. Esse duplo fundamento justifica não apenas a existência de normas fundamentais de natureza trabalhista (na medida em que não negligencia o fato objetivo de que o trabalhador está em situação de hipossuficiência em relação a quem detém o capital), como também o preceito da proibição de retrocesso social.
Apenas assim estaremos reafirmando a dignidade humana, tornando-a passível de ser assegurada pela ordem jurídica. Se não tivermos em mente a noção de proibição de retrocesso social aliada à dimensão palpável da dignidade humana – como modo de garantí-la – corremos o risco de tornar os preceitos fundamentais um mero amontoado de palavras, capazes de servir aos mais diversos objetivos, que não a proteção da dimensão plural do homem (o homem como cidadão)[25].
No âmbito do direito do trabalho, a compreensão dessa realidade, faz com que melhor compreendamos a necessidade de reafirmar os direitos trabalhistas fundamentais – e não de mitigá-los.
A noção de que a proteção aos direitos fundamentais é condição de possibilidade da democracia real, modelo político que se adapta, inclusive, ao modo capitalista de produção vigente. É essencial para que a crise vivida pelo estrangulamento desse sistema possa ser enfrentada (com ou sem êxito).
E em nossa realidade atual, devemos perceber – como nos demonstra a história recente – que a idéia individualista de livre negociação como forma de incentivo ao desenvolvimento do mercado (agora globalizado) não resolve nossas mazelas[26]. Em claras palavras: não teremos desenvolvimento econômico satisfativo em um país emergente como o Brasil, suprimindo ou flexibilizando regras trabalhistas. Teremos, apenas, se garantirmos um mínimo de direitos sociais fundamentais, a partir dos quais é possível falar em condições dignas de sobrevivência, de contratação e de desenvolvimento[27].
Pois bem. Chegamos ao ponto principal dessa reflexão. Temos duas regras da CLT que são emblemáticas, porque bem revelam a dificuldade que temos em implementar a nova ordem constitucional – nada obstante seus vinte anos de existência.
Os arts. 60 e 62 da CLT não têm, a princípio, conexão direta. Ambos, porém,
tratam de jornada. O primeiro se refere ao tempo de trabalho em atividade considerada lesiva à saúde[28], enquanto o segundo dispõe acerca de hipóteses nas quais as normas atinentes à jornada não seriam aplicáveis[29].
A relação entre esses dispositivos, além do fato de que disciplinam a jornada, está na circunstância de que ambos são interpretados por boa parte da doutrina e da jurisprudência, de modo a negar eficácia à proteção social do trabalho. De modo a negar vigência ao conteúdo mesmo de tais normas trabalhistas.
É o texto constitucional quem estabelece, do modo taxativo, o limite de tempo de trabalho, diário e semanal. O art. 7º, inciso XIII, da Constituição Federal, dispõe que a jornada não deve exceder a oito horas. As hipóteses de prorrogação estão ali expressamente mencionadas e dependem de negociação coletiva.
A nova ordem constitucional é, pois, incompatível com as disposições do art. 62 da CLT, que simplesmente nega o direito constitucional às horas extras, àqueles que supostamente trabalham sem controle de horário. Note-se que a nova ordem constitucional reconhece como direito humano fundamental a jornada de oito horas e não comporta exceções. Garante, também, o direito ao pagamento de adicional de horas extras, sem qualquer exceção.
Assim, a partir de 1988, não é mais razoável pensar em atividades nas quais a prestação de serviços pode ser exigida sem qualquer limitação legal. Tal raciocínio equivale à idéia de que a Constituição Federal poderia não ser aplicada a determinados trabalhadores. Ou seja, inverte de modo absoluto a lógica do constitucionalismo que justifica nossa organização social como estado democrático e de direito.
Em um país democrático fundado em uma constituição social como a nossa, o ordenamento jurídico deve se adequar às normas e princípios estabelecidos no pacto social. Por isso, a doutrina constitucional já superou a teoria acerca da existência de normas programáticas na constituição de um país democrático. As normas que orientam a organização jurídica de determinada comunidade, em certo período histórico, são – por sua própria natureza de pacto social – imediata e plenamente aplicáveis. Podem, apenas, ser balizadas por legislações infraconstitucionais específicas. Jamais por elas negadas.
Apesar disso, poucas são as decisões no sentido da incompatibilidade da regra do art. 62 da CLT com a ordem constitucional vigente. As razões para essa letargia são mais profundas do que podemos imaginar e passam pela dificuldade em admitir a nova ordem consolidada a partir do paradigma da solidariedade.
A perversidade do dispositivo ordinário consiste na realidade de que os empregadores deixam propositadamente de efetuar controle direto do horário de trabalho, para o efeito de se eximirem do pagamento da jornada suplementar. Isso, porém, não afasta a circunstância de que tais trabalhadores são muitas vezes submetidos ao cumprimento de metas que certamente não poderiam ser atingidas em até oito horas diárias de trabalho.
Na crítica precisa de Jorge Souto Maior, “importante passo a ser dado na direção da humanização das relações de trabalho dos altos empregados é reconhecer que, mesmo tendo alto padrão de conhecimento técnico e sendo portadores de uma cultura mais elevada que o padrão médio dos demais empregados, não deixam de depender economicamente do emprego (aliás, há uma dependência até moral ao emprego, dada a necessidade natural de manutenção do seu status social) e que, por conta disso, submetem-se às regras do jogo capitalista para não perderem sua inserção no mercado. Sua sujeição às condições de trabalho que lhe são impostas, pela lógica da produção, é inevitável e muitas vezes muito mais perversa do que aquela que impera sobre os trabalhadores braçais.”[30] O autor questiona se alguém põe em dúvida a aplicação da regra do descanso semanal remunerado a esses trabalhadores, argumentando que a aplicação fria do art. 62 da CLT deveria levar a esse entendimento. Com isso, pretende demonstrar a total incompatibilidade desse dispositivo legal com a ordem constitucional instaurada a partir de 1988.
Ainda assim, sequer há uma séria preocupação em adequar o aludido dispositivo ao comando constitucional, conferindo-lhe caráter excepcional. Vale dizer, os requisitos do art. 62 da CLT devem ser cabalmente demonstrados, para que se possa falar em dispensa do registro da jornada. E mais, teríamos de interpretá-lo de sorte a considerar que os trabalhadores insertos nas hipóteses nele referidas “não são abrangidos” pelo capítulo da jornada, mas uma vez submetidos a trabalho extraordinário, têm direito ao pagamento do adicional de horas extras, porque expressamente garantido pelo art. 7º da Constituição Federal, sem exceção alguma. Nesse sentido, há apenas uma decisão do nosso TRT da Quarta Região. Diz a ementa: “HORAS EXTRAS – ART. 62, I, DA CLT – Mesmo os trabalhadores que desenvolvem atividade externa, nos moldes em que previsto no art. 62, I, da CLT, fazem jus a horas extras, se comprovado o labor nestas condições”. (00445-2002-028-04-00-3 RO, Rel.ª Beatriz Renck, julgado em 6.06.2007, 3ª Turma, unânime).
Por fim, teríamos de compreender nos termos do art. 62 apenas os trabalhadores que realizassem, por exemplo, atividade externa efetivamente “incompatível com o controle de horário”. Esse é o texto expresso no dispositivo consolidado. Portanto, não basta que as tarefas sejam realizadas fora da sede da empresa. É indispensável que o empregador demonstre, no caso concreto, que a jornada não poderia, mesmo que as partes quisessem, ser controlada de modo eficaz.
Se a quantidade de horas colocadas à disposição da empresa pode ser aferida mediante simples exame de um tacógrafo, de um aparelho GPS, ou de um relatório de visitas, não há falar em atividade “incompatível com o controle” e, por conseqüência, não se está diante da hipótese contemplada no dispositivo legal em exame.
Do mesmo modo, se o gerente não exerce verdadeiro cargo de gestão, de tal sorte que represente a figura do empregador no ambiente de trabalho, não há falar em impossibilidade de controle da jornada. É a impossibilidade que deve ser aferida. Havendo possibilidade de aferição da jornada, é obrigação do empregador controlá-la, efetuando o pagamento das horas que excedem à jornada regular.
E se realmente não é possível aferir a jornada, é certo que o empregador deve ser abster de exigir do empregado a realização de atividades que certamente demandariam tempo de trabalho superior àquele garantido como máximo regular pela Constituição Federal, sob pena do sinalagma que caracteriza a relação de trabalho.
A utilização indiscriminada dos termos do art. 62 da Constituição Federal, para o efeito de negar o direito constitucional ao pagamento das horas extras, subverte a ordem jurídica vigente, atentando contra os princípios que fundamentam e justificam a existência mesma do direito do trabalho.
A ordem constitucional instaurada em 1988 fixa os parâmetros a partir dos quais toda a legislação vigente deve ser interpretada e aplicada. Desse modo, a partir das premissas ali fixadas, teríamos como alternativa a compreensão de que o art. 62 não foi recepcionado pela nova ordem constitucional ou, pelo menos, de que seria aplicável apenas nos limites ali compreendidos, a serem sempre examinados com muita cautela.
Nesse sentido há, inclusive, enunciado aprovado na 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, realizada em Brasília, em 23.11.2007, pelo TST, com o apoio da ANAMATRA. A Ementa de nº 17 é assim redigida:
LIMITAÇÃO DA JORNADA – REPOUSO SEMANAL REMUNERADO – DIREITO CONSTITUCIONALMENTE ASSEGURADO A TODOS OS TRABALHADORES – INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 62 DA CLT – A proteção jurídica ao limite da jornada de trabalho, consagrada nos incisos XIII e XV do art. 7º da Constituição da República, confere, respectivamente, a todos os trabalhadores, indistintamente, os direitos ao repouso semanal remunerado e à limitação da jornada de trabalho, tendo-se por inconstitucional o art. 62 da CLT”.
Tal compreensão, calcada na noção de proibição de retrocesso social, jamais poderia conceber a supressão do pagamento do adicional de horas extras (constitucionalmente garantido), em qualquer hipótese. Em outras palavras, seria possível entender que as regras da CLT, atinentes à jornada, não seriam aplicáveis ao trabalhador cujas condições de trabalho tornassem impossível a aferição da real jornada, desde que esse mesmo trabalhador não fosse, de modo algum, submetido a horário de trabalho superior àquele fixado como normal, no texto constitucional.
Provada a exigência, por parte do empregador, de realização de horas extras, é inafastável a aplicação do preceito contido na Constituição Federal, que garante o pagamento dessas horas de trabalho, com um adicional de salário capaz de compensar a extenuação física e a perda do tempo de vida na Terra, que tal prática determina.
Além disso, o mínimo necessário para que a redação do art. 62 da CLT fosse, de algum modo, compatibilizada com os termos da Constituição Federal, seria interpretá-lo com máxima restrição e compreendê-lo não-aplicável aos bancários.
Os empregados bancários têm sua jornada disciplinada nos arts. 224 a 226 da CLT. Quando esse diploma legal inaugura as disposições acerca da jornada, fixa, em seu artigo 57, que “os preceitos deste Capítulo aplicam-se a todas as atividades, salvo as expressamente excluídas, constituindo exceções as disposições especiais, concernentes estritamente a peculiaridades profissionais constantes do Capítulo I do Título III”. Os dispositivos antes mencionados, especialmente fixados para a categoria dos bancários, estão dispostos no título III, capítulo I, da CLT. Ou seja, o art. 57 da CLT é norma de conteúdo cristalino, que afasta dos trabalhadores que tenham disposições especiais em face da peculiaridade das atividades que exercem, as normas genéricas equivalentes, previstas nos arts. 58 e seguintes.
Essa é a singela razão pela qual o art. 62 da CLT, invocado em contestação, não se aplica aos bancários. Nesse sentido, existem as seguintes decisões do nosso Tribunal:
HORAS EXTRAS – ARTIGO 62, II, DA CLT – CARGO DE CONFIANÇA – JORNADA – Não há falar em incidência da regra geral do art. 62 da CLT face à existência de norma específica acerca da jornada de trabalho dos empregados bancários. Aplicação da regra vertida no § 2º do art. 224 da CLT, que exclui do âmbito da jornada de seis horas os bancários “que exercem funções de direção, gerência, fiscalização, chefia ou equivalente, ou desempenhem outros cargos de confiança, desde que o valor da gratificação não seja inferior a um terço do salário do cargo efetivo”. Jornada de trabalho arbitrada na decisão a quo em consonância com o conjunto probatório. (Proc. 00273-2003-511-04-00-8 RO, Rel.ª Laís Helena Nicotti, julgado em 10.05.2008, 1ª Turma, unânime) e
RECURSO ORDINÁRIO DO RECLAMANTE – EXERCÍCIO DE CARGO DE CONFIANÇA – INAPLICABILIDADE DA EXCEÇÃO PREVISTA NO INCISO II DO ARTIGO 62 DA CLT – ENQUADRAMENTO NO ARTIGO 224, §2º, DA CLT – Não aplicável à categoria dos bancários a exceção prevista pelo inciso II do art. 62 da CLT, pois, por disposição expressa na legislação trabalhista (art. 57 da CLT), os bancários não estão sujeitos às regras comuns de duração do trabalho, estando abrangidos por capítulo especial do diploma consolidado (arts. 224 a 226 da CLT). Sem amplos poderes e tendo o autor exercido funções de gerência no período em que laborou nas Agências de Estrela e Taquara conforme regra do § 2º do art. 224 da CLT, são extraordinárias as horas prestadas além da oitava diária. Recurso parcialmente provido (Proc. 00828-2006-771-04-00-4 (RO), Rel.ª Eurídice Josefina Bazzo, julgado em 17.04.2008, 1ª Turma, unânime).
Disso se conclui não haver fundamento legal para a inexistência de controle do horário dos gerentes bancários. O fato de exercerem cargo de confiança, caso reconhecido, geraria tão-somente a aplicação da exceção contida no § 2º do art. 224 da CLT, acerca da jornada de seis horas (que passaria a ser de oito). Essa é a exegese que torna o aludido dispositivo compatível com a norma constitucional que, a partir de 1988, reconhece a todos os trabalhadores urbanos e rurais o direito ao pagamento do adicional de horas extras (art. 7º, XVI, da CF), sem exceção alguma. Ou seja, comprovada a efetiva realização de jornada extraordinária, não há como afastar o direito ao pagamento de horas extras.
Em relação ao art. 60 da CLT, a discussão se inverte. Enquanto insistimos em fazer prevalecer a regra do art. 62 da CLT, embora a percebamos incompatível com o pacto social instaurado em 1988, negamos vigência ao art. 60. Inúmeras decisões judiciais chancelam disposições coletivas que simplesmente atestam que o art. 60 “não vale” para as categorias ali abrangidas. Há, inclusive, entendimento sumulado nesse sentido.
A Súmula 349 do TST[31] provoca uma tal inversão de raciocínio, que desafia o bom senso. Afirma que o fato de a Constituição Federal garantir o “reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho”[32] implica afastar a regra do art. 60 da CLT. Esquece, propositadamente, que o mesmo dispositivo que garante o reconhecimento das convenções e acordos coletivos, garante também “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”[33], concebendo regra fundamental da qual o art. 60 da CLT é expressão de eficácia.
A interpretação consolidada em súmula empresta a um dispositivo do art. 7º da Constituição Federal a capacidade – em tudo incompatível com a mais simples interpretação hermenêutica – de afastar a vigência de outro dispositivo de igual (ou superior) hierarquia. Olvida que a Constituição Federal garante a proteção à saúde como preceito fundamental e determina, explicitamente, a redução dos riscos no ambiente de trabalho. O art. 60 da CLT é, pois, plenamente compatível com a ordem constitucional vigente e em nada afeta o preceito constitucional que reconhece a (inegável) importância da negociação coletiva.
A negociação coletiva é em tudo e por tudo passível de ser protegida e desenvolvida como um dos pilares mais importantes do direito do trabalho. É justamente no direito sindical que melhor se explicita a dimensão plural do homem[34]. Entretanto, essa negociação só faz sentido como tal, ou seja, como verdadeira negociação, como troca. Seu papel não se confunde com o da legislação. É a partir do mínimo de direitos legalmente garantidos que as partes podem e devem negociar. Admitir uma negociação que diga “essa norma não vale pra nós”, sobretudo quando se está diante de uma norma de direito fundamental indisponível, diretamente associada à saúde do trabalhador, constitui inversão da lógica na qual se assenta um Estado de direito.
Nesse sentido, é importante salientar que existem vozes que resistem ao entendimento consolidado, que nega vigência a dispositivo tendente a garantir a eficácia da norma constitucional de proteção à saúde do trabalhador. É prova disso um acórdão da lavra da Juíza Magda Barros Biavaschi[35], em cujo texto se lê que “entre os requisitos de validade do ato jurídico está a observância da forma prescrita ou não defesa em lei”, razão por quê o art. 60 da CLT não pode ser olvidado. A não observância do expresso requisito legal determina a nulidade do ato.
A decisão torna certo o fato de que a prévia autorização da autoridade do Ministério do Trabalho constitui condição para que o ato de prorrogação da jornada em trabalho insalubre seja considerado válido. Ou seja, de que o art. 60 da CLT não foi derrogado ou revogado pela regra do art. 7º, XIII, da Constituição Federal. Antes disso, a Constituição Federal expressamente propugna a proteção à saúde do trabalhador como direito fundamental, albergando integralmente os termos desse dispositivo legal.
Ao invocar o art. 145, III, do Código Civil, a decisão diz algo que, apesar de óbvio, vem sendo simplesmente ignorado pelas decisões judiciais. O aludido dispositivo legal, atualmente transmutado, pela edição do novo código, no art. 166, inciso IV, do Código Civil de 2002[36], dispõe seja nulo o negócio jurídico que não se reveste da forma prevista em Lei. O contrato coletivo para a prorrogação de horário sem dúvida se reveste da qualidade de negócio jurídico. De acordo com o multicitado art. 60 da CLT, deve observar – quando relativo a trabalho insalubre – a prévia autorização da autoridade competente. Não o fazendo, ignora a forma prescrita em Lei, atraindo a incidência da regra genérica de nulidade. O fato de se tratar de regra atinente à saúde do trabalhador, com qualidade de direito humano fundamental, reveste de ainda maior gravidade a inobservância do texto legal. E, sendo nulo, não gera efeito no mundo jurídico. A conseqüência é o necessário entendimento de que no âmbito da relação individual de trabalho insalubre não há verdadeiro regime de prorrogação de jornada legitimamente instaurado.
Note-se que a decisão em nada afeta a eficácia do dispositivo constitucional que reconhece as convenções e acordos coletivos. Antes disso, é justamente por que se trata de espécies de negócios jurídicos amplamente incentivados no âmbito das relações de trabalho, que tais acordos devem observar as formalidades legais.
No mesmo passo, há decisão da lavra da Juíza Carmen Camino[37], na qual firma-se o entendimento de que “sendo insalubre o trabalho e desatendido o disposto no art. 60 da CLT, fraudada resta a tutela expressa na norma imperativa e irrenunciável, em plena vigência”. A Relatora expressa seu entendimento de que não há fundamento jurídico ou lógico que sustente a tese de que a Constituição Federal de 1988 não recepcionou o art. 60 da CLT. Com efeito, se buscarmos as tantas decisões que repetem o quanto contido no entendimento sumulado em nível regional e nacional, veremos que a maior parte delas limita-se a aplicar a súmula, sem invocar fundamentos consistentes. Outras, buscam na regra genérica do inciso XIII do art. 7º da Constituição Federal, a justificativa. Tal dispositivo garante “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”.
Mantém, pois, a regra geral de limitação da jornada em oito horas, cuja importância já foi salientada, aduzindo, tão-somente, a possibilidade de compensação de horário mediante acordo ou convenção coletiva.
A conclusão de que autorizar a compensação de jornada significa derrogar todos os dispositivos que determinam limites ou condições para o exercício do direito à prorrogação da jornada mediante compensação é absurda. Admitindo-se tal raciocínio, teríamos de entender derrogada, inclusive, a regra que impede a prorrogação de horário para o trabalho exercido por menor ou nas situações de contrato a tempo parcial. A doutrina e a jurisprudência não ousam tanto.
Vozes mais recentes determinaram a edição de um enunciado também nesse sentido, na 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho realizada em Brasília em 23.11.2007. A Ementa de nº 49 é assim redigida:
ATIVIDADE INSALUBRE – PRORROGAÇÃO DE JORNADA – NEGOCIAÇÃO COLETIVA – INVALIDADE – O art. 60 da CLT não foi derrogado pelo art. 7º, XIII, da Constituição da República, pelo que é inválida cláusula de Convenção ou Acordo Coletivo que não observe as condições nele estabelecidas.
Ora, o art. 60 da CLT não foi derrogado pelo art. 7º, inciso XIII, da Constituição da República. A possibilidade de pactuar regime de compensação de jornada – que já existia desde 1943 – é plenamente compatível com a necessidade de um cuidado maior para as hipóteses em que a saúde do trabalhador pode ser colocada em risco pelo trabalho excessivo.
A proteção à saúde do trabalhador constitui norma fundamental, explicitada tanto
no artigo sexto da Constituição Federal[38], quanto no artigo sétimo[39]. O art. 60 da CLT é exemplo de norma que visa a reduzir os riscos inerentes ao trabalho, protegendo diretamente a saúde do trabalhador exposto à condição danosa. Nesse sentido, Maurício Godinho Delgado escreve que “as normas jurídicas concernentes à jornada não são mais – necessariamente – normas estritamente econômicas, uma vez que podem alcançar, em certos casos, a função determinante de normas de saúde e segurança laborais, assumindo, portanto, o caráter de normas de saúde pública.”
E prossegue aduzindo que “é importante enfatizar-se que a maior ou menor extensão da jornada atua diretamente, na deterioração ou melhoria das condições internas de trabalho na empresa, comprometendo ou aperfeiçoando uma estratégia de redução dos riscos e malefícios inerentes ao ambiente de prestação de serviços.” Assim, “do mesmo modo que a ampliação da jornada (inclusive com a prestação de horas extras) acentua, drasticamente, as probabilidades de ocorrência de doenças profissionais ou acidentes de trabalho, a redução da jornada diminui, de maneira significativa, essas probabilidades da chamada ‘infortunística do trabalho´”[40].
No mesmo sentido, Arion Sayão Romita menciona que “a autonomia coletiva só poderia expressar-se validamente no sentido de melhorar em benefício do trabalhador os mínimos legalmente previstos”[41], não sendo válida, portanto, para suprimir direito fundamental diretamente relacionado à saúde do trabalhador e, pois, afeto ao núcleo de direitos fundamentais que garantem eficácia ao princípio de proteção à dignidade humana.
Castilho Morato também se posiciona em modo contrário ao entendimento do TST, ressaltando que a previsão da Súmula nº 349 constitui “afronta à saúde do empregado; ou, olhando-se em âmbito meramente legislativo, há ofensa a outra norma do mesmo artigo da Carta Magna, insculpido no inciso XXII, que determina a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. A exposição do trabalhador por maior espaço de tempo a condições insalubres fere os princípios protetivos à sua saúde, devendo ser mantidos os estreitos limites legais para negociação quando se refere ao bem-estar físico do empregado”[42].
Importante salientar, ainda, que o art. 59 da CLT já cogitava da possibilidade do estabelecimento de compensação de horário semanal e, justamente por isso, era – e é – seguido pelo art. 60. Com a nova ordem constitucional, reafirma-se a necessidade de valorização social do trabalho. Dimensiona-se a dignidade humana como preceito fundamental.
Assim, o inciso XIII de aludido art. 7º da Constituição da República tão-somente prevê a faculdade de ser estipulado regime de compensação de horário, sem revogar os respectivos requisitos previstos na legislação ordinária. E convém lembrar que se na prática a exigência da CLT inviabilizava a prestação de serviço extraordinário, é porque era exatamente esse o escopo da norma. Não podemos, pois, perder a noção de que o trabalho extraordinário deve ser como tal considerado, ou seja, como circunstância excepcional. Não podemos, também, olvidar o fato de que tanto a carta constitucional quanto a CLT preconizam a necessidade de que o empregador envide esforços para suprimir a situação insalubre de trabalho, mantendo um ambiente adequado.
Soma-se ao argumento constitucional, o fato de que o Brasil é signatário da Convenção 155 da OIT[43], em cujo texto se explicita a necessidade de “por em prática e reexaminar periodicamente uma política nacional coerente em matéria de segurança e saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho”[44].
O art. 9º da aludida Convenção 155 da OIT refere que o “controle da aplicação das leis e dos regulamentos relativos à segurança, à higiene e ao meio ambiente de trabalho deverá estar assegurado por um sistema de inspeção das leis ou dos regulamentos”, emprestando evidente força a normas como aquela contida no art. 60 da CLT.
Do mesmo modo, a Convenção 81 da OIT[45] disciplina que os Estados têm obrigação de manter um “Sistema de Inspeção do Trabalho constituído por servidores públicos, em número suficiente, com garantia de emprego e independentes, recrutados por suas qualificações e adequadamente treinados, para inspecionar a indústria e o comércio, com as funções principais de: Garantir o cumprimento dos dispositivos legais referentes às condições de trabalho e proteção dos trabalhadores”.
Assim, as dificuldades práticas traduzidas na demora em obter o certificado do Ministério do Trabalho ou na insuficiência de fiscais, não justificam a derrogação tácita, por manifesta omissão e conivência da jurisprudência dominante, de dispositivo que busca conferir eficácia aos princípios da proteção à saúde e à dignidade do homem que trabalha. Aqui, relembramos todo o embasamento teórico antes explicitado, para a compreensão necessária de que o homem é o destinatário final da norma, e não um meio passível de ser utilizado para a consecução de um objetivo econômico.
Observar esses dois dispositivos do texto consolidado, sob uma mesma ótica, permite ver com nitidez a miopia da doutrina e da jurisprudência dominante. Enquanto parece fácil dizer que o art. 62 da CLT está plenamente vigente, porque não existe lei que expressamente o derrogue, embora seja nítida a sua incompatibilidade com a ordem constitucional de 1988, há uma resistência a admitir a tal incoerência da interpretação sumulada e da reiterada negativa de vigência aos termos do art. 60 da CLT.
Trata-se de uma compreensão inautêntica do direito. A ordem constitucional estabelecida há vinte anos não tem o condão de, por um passe de mágica, converter a interpretação das regras, contaminando os juristas com a concepção de que a solidariedade e a dignidade humana reinam agora, onde antes havia apenas individualismo.
É preciso mais do que leis protetivas, para estabelecer uma verdadeira democracia. A interpretação dominante acerca dos arts. 60 e 62 da CLT, invertendo em tudo a lógica do sistema e desafiando o mais comezinho preceito de hermenêutica, é prova disso. É imperioso ler a legislação vigente com um olhar contaminado pelas regras e, sobretudo, pelos princípios assentados em nossa Constituição Federal, sob pena de continuarmos a aplicá-la como se o pacto social de 1988 não tivesse introduzido mudança alguma em nosso modo de organização política e econômica.
BIBLIOGRAFIA
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. 6. ed.; Coimbra: Almedina, 1993.
CARETTI, Paolo. I Diritti Fondamentali. Libertà e Diritti Sociali. Torino: Giappichelli Editore, 2005.
CASTILHO MORATO, João Marcos. Globalismo e Flexibilização Trabalhista. Belo Horizonte: Editora Inédita, 2003.
FERRAJOLI, Luigi. Diritti Fondamentali. 2. ed. Bari: Laterza, 2002.
GODINHO DELGADO, Maurício. Jornada de Trabalho e Descansos Trabalhistas. 2. ed. São Paulo: LTr, 1998, pp. 20-21.
HABERLE, Peter. A Dignidade Humana como Fundamento da Comunidade Estatal. In SARLET, Ingo Wolfgang (org). Dimensões da Dignidade. Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. 12. ed. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
KROTOSCHIN, Ernesto. Instituciones de Derecho del Trabajo. 2. ed. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1968.
MARQUES, Rafael da Silva. Valor Social do Trabalho na ordem econômica, na Constituição Federal de 1988. São Paulo: LTr, 2007.
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüistico-Pragmática na Filosofia Contemporânea. Coleção Filosofia. 2. ed. São Paulo: Ed Loyola, 2001.
ROMITA, Arion Sayão. Intervalo Interjornada em Turnos de Revezamento. Trabalho e Doutrina. São Paulo: Saraiva, nº 22, pp. 75-82, set. 1999.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
SOUTO MAIOR, Jorge. Curso de Direito do Trabalho. Vol. II, São Paulo: LTr, 2008.
STRECK, Lênio Luiz. Análise Crítica da Jurisdição Constitucional e das possibilidades hermenêuticas de concretização dos direitos fundamentais. In SCAFF, Fernando Facury (org). Constitucionalizando Direitos. São Paulo: Renovar, 2003.
[1] Luigi Ferrajoli salienta que a constituição nada mais é do que um contrato social, “patti fondativi della convivenza civile”. (FERRAJOLI, Luigi. Diritti Fondamentali. 2a. edizione. Bari: Laterza, 200, p. 21)
[2] “Il garantismo è a´altra faccia del costituzionalismo, consistendo nell´insieme delle tecniche idonee ad assicurare il massimo grado di effettività adicional de insalubridade diritti costituzionalmente riconosciuti” (FERRAJOLI, Luigi. Diritti Fondamentali. 2a. edizione. Bari: Laterza, 2002, Op. Cit., p. 348).
[3] Como afirma Lênio Streck, a Constituição de um país é o seu pacto social, é o “topos hermenêutico que conformará a interpretação jurídica”. (Op. Cit., p. 215).
[4] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 69.
[5] SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit., p. 72.
[6] Idem, p. 98.
[7] Op. Cit., p. 121.
[8] Idem, ibidem.
[9] O trabalho “muda de sentido quando gera a liberdade para o trabalhador-consumidor sem a preocupação apenas com a subsistência ou com a segurança”. (FERRARI, Irany. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. História do Trabalho, do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 2002, p. 71). A função social do trabalho permite “a realização pessoal do trabalhador”, que diz com “a dignidade atribuída ao homem pelo trabalho. É o sentimento de que existe e de que é útil à sociedade a que pertence” (Idem, p. 71).
[10] Ernesto Krotoschin define a questão, aduzindo que “el principio del derecho del trabajo es muy simple: el hombre que trabaja tiene derecho a conducir una vida que corresponda a la dignidad de la persona humana” (KROTOSCHIN, Ernesto. Instituciones de Derecho del Trabajo. 2. ed. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1968, p. 08).
[11] Também a Constituição italiana dispõe, já em seu art. 1º, constituir-se de uma república “democratica, fondata sul lavoro, intese come contributo che ciascuno dà al progresso materiale e culturale della società italiana, il valore sociale primario, il che non può non essere letto che come polemica puntualizzazione rispetto ai sistemi statali in sostanza fondati sulla preminenza sociale dei possessori dei beni” (CARETTI, Paolo. I Diritti Fondamentali. Libertà e Diritti Sociali. Torino: Giappichelli Editore, 2005, pp. 88-9).
[12] STRECK, Lênio Luiz. Análise Crítica da Jurisdição Constitucional e das possibilidades hermenêuticas de concretização dos direitos fundamentais. In SCAFF, Fernando Facury (org). Constitucionalizando Direitos. São Paulo: Renovar, 2003, p. 137.
[13] OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüistico-Pragmática na Filosofia Contemporânea. Coleção Filosofia. 2. ed. São Paulo: Ed Loyola, 2001, p. 30.
[14] OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. Cit., p. 32
[15] HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. 12. ed. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Vozes, 2002, p. 219. Para Heidegger, a compreensão do ser-no-mundo se pronuncia no discurso. Ou seja, “das significações brotam palavras”, de sorte que o discurso “é constitutivo da existência da pre-sença”.
[16] Não é por outro motivo que direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal, tais como aquele que estabelece um prévio aviso proporcional ao tempo de serviço para os casos de denúncia imotivada do contrato, não tenham, até hoje, sido regulamentados e venham sendo frontalmente negligenciados pelos operadores do direito. Os exemplos se multiplicam.
[17] Idem, p. 143.
[18] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. 6. ed.; Coimbra: Almedina, 1993, p. 338.
[19] Idem, p. 339.
[20] Atente-se que aqui não há, como a princípio pode parecer, uma incoerência. Apenas tentamos sublinhar a necessidade de proteção do homem em seu viés social, enquanto ser-com-os-outros, e não individualmente considerado.
[21] Idem, ibidem.
[22] Canotilho assim define: O princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais, já realizado e efetivado através de medidas legislativas, deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa “anulação”,“ revogação” ou “aniquilação” pura e simples desse núcleo essencial. (Op. Cit., p. 340).
[23] Nesse sentido, ler: MARQUES, Rafael da Silva. Valor Social do Trabalho na ordem econômica, na Constituição Federal de 1988. São Paulo: LTr, 2007.
[24] HABERLE, Peter. A Dignidade Humana como Fundamento da Comunidade Estatal. In SARLET, Ingo Wolfgang (org). Dimensões da Dignidade. Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 137. Embora Peter Haberle utilize a expressão ‘indivíduo’, deixa evidente que a proteção deve ser outorgada ao homem em seu sentido plural, superando a visão individualista clássica.
[25] Nunca esqueçamos que Hitler, além de haver realizado um governo extremamente atento à legalidade, era pródigo em discursos que ressaltavam a necessidade de proteger o homem, garantindo-lhe uma vida saudável e feliz. É claro que a noção de felicidade passava pela pureza da raça ariana e extirpação – tanto em seu sentido figurado quanto literal – das influências das demais raças e culturas.
[26] Ao contrário, aguça as falhas do sistema, tornando-o mais próximo de um colapso.
[27] A flexibilização é, portanto, expressão da idéia neoliberal de retorno ao período de livre negociação, de supremacia das vontades individuais. Um revigoração do liberalismo clássico, cujo esgotamento, como tivemos a oportunidade de examinar, ocorreu em função de elementos históricos, mas também de fatores econômicos. O capitalismo liberal não resistiu à sua própria fúria e recuou, nos anos 30, para sobreviver readequando-se. Agora, o capitalismo regride, esquecendo-se do que aprendeu com os erros do passado. O pêndulo da história deve considerar o passado, para avançar. É inaceitável o puro e simples retrocesso, como pretende a lógica neoliberal, com o desmanche de uma estrutura de direitos fundamentais gestada com dor e sofrimento, a partir da experiência vivida na segunda metade do século XX.
[28] Art. 60. Nas atividades insalubres, assim consideradas as constantes dos quadros mencionados no capítulo “Da Segurança e da Medicina do Trabalho”, ou que neles venham a ser incluídas por ato do Ministro do Trabalho, Industria e Comercio, quaisquer prorrogações só poderão ser acordadas mediante licença prévia das autoridades competentes em matéria de higiene do trabalho, as quais, para esse efeito, procederão aos necessários exames locais e à verificação dos métodos e processos de trabalho, quer diretamente, quer por intermédio de autoridades sanitárias federais, estaduais e municipais, com quem entrarão em entendimento para tal fim.
[29] Art. 62. Não são abrangidos pelo regime previsto neste capítulo: I – os empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de empregados; II – os gerentes, assim considerados os exercentes de cargos de gestão, aos quais se equiparam, para efeito do disposto neste artigo, os diretores e chefes de departamento ou filial. Parágrafo único – O regime previsto neste capítulo será aplicável aos empregados mencionados no inciso II deste artigo, quando o salário do cargo de confiança, compreendendo a gratificação de função, se houver, for inferior ao valor do respectivo salário efetivo acrescido de 40% (quarenta por cento)
[30] SOUTO MAIOR, Jorge. Curso de Direito do Trabalho, Vol. II, São Paulo: LTr, 2008, p. 201.
[31] Súmula Nº 349 do TST – ACORDO DE COMPENSAÇÃO DE HORÁRIO EM ATIVIDADE INSALUBRE, CELEBRADO POR ACORDO COLETIVO – VALIDADE – A validade de acordo coletivo ou convenção coletiva de compensação de jornada de trabalho em atividade insalubre prescinde da inspeção prévia da autoridade competente em matéria de higiene do trabalho (art. 7º, XIII, da CF/1988; art. 60 da CLT). (Res. 60/1996, DJ 08.07.1996). Súmula nº 7 do Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região: “COMPENSAÇÃO DE HORÁRIOS – ATIVIDADE INSALUBRE – Desde que facultada, mediante acordo coletivo ou convenção coletiva de trabalho, é regular a adoção do regime de compensação de horários em atividade insalubre, independentemente da licença prévia de que trata o art. 60 da CLT. Resolução Administrativa nº 03/99 – Publ. DOE-RS dias 10, 11 e 12 de maio de 1999
[32] No inciso XXVI do artigo sétimo.
[33] Inciso XXII do mesmo dispositivo constitucional.
[34] O movimento sindical compõe a versão plural do trabalho humano, configurando-se como o mais viável modo de resistência da classe trabalhadora à investida liberal, que coisifica o homem e gera, dia-a-dia, um número expressivo de marginalizados. A negociação coletiva é o modo como o capital e o trabalho estabelecem as regras de convivência pacífica. É através dela, também, que o homem-trabalhador garante as condições mínimas para que essa convivência continue existindo.
[35] “ADICIONAL DE HORAS EXTRAS – JORNADA COMPENSATÓRIA – Termos de acordo supostamente ajustados em RVDC e em convenções coletivas cujas cópias juntadas ao processo não contam com a prova da homologação pela Seção de Dissídios Coletivos deste Tribunal e, tampouco, do depósito junto à Delegacia Regional do Trabalho, respectivamente. Eficácia que não se reconhece. Regramentos coletivos que, ao disporem sobre a adoção da jornada compensatória, nada ressalvam quanto ao trabalho com agentes insalubres. Regra do art. 60 da CLT. Entendimento expresso no Enunciado de Súmula 7 deste Regional que sequer é invocável. Modalidade nula e, em decorrência, ineficaz. Apelo a que se dá provimento” (RO 00862.373/99-9, publicado em 26.11.2001, 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, julgado em 7.11.2001, Rel.ª Magda Barros Biavaschi, acessível no site www.trtr.4gov.br, acesso em 2 fev. 2007).
[36] Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando : IV – não revestir a forma prescrita em lei”.
[37] “Regime compensatório. Art. 60 da CLT. Enunciado-85/SJ. TST. Ausência de prova tempestiva de negociação coletiva. Vigência do art. 60 da CLT. A Constituição Federal contempla a generalidade da prorrogação da jornada, não impedindo que o legislador ordinário cuide de impor restrições à sua ocorrência em trabalho insalubre. Prevalência da norma mais favorável, pelo princípio da inversão da hierarquia das fontes formais”. (00838.221/94-7 (RO), publicado em 22.05.2000, Rel.ª Carmen Camino, 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, julgado em 5.05.2000, acessível no site do Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, www.trt4.gov.br, acesso em 2.06.2007).
[38] Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
[39] “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” Artigo 7º, inciso XXII, da Constituição Federal.
[40] GODINHO DELGADO, Maurício. Jornada de Trabalho e Descansos Trabalhistas, 2 ed. São Paulo: LTr, 1998, pp. 20-21, citado na p. 139.
[41] ROMITA, Arion Sayão. Intervalo Interjornada em Turnos de Revezamento. Trabalho e Doutrina. São Paulo: Saraiva, n. 22, pp. 75-82, set. 1999, citado na p. 140.
[42] CASTILHO MORATO, João Marcos. Globalismo e Flexibilização Trabalhista. Belo Horizonte: Editora Inédita, 2003, p. 143.
[43] Aprovada pelo Decreto Legislativo nº 2, de 1992, em 17.03.1992, e promulgada pelo Decreto 1.254, de 29.09.1994, publicado em 29.09.1994.
[44] Artigo quarto da Convenção 155 da OIT.
[45] Ratificada pelo Decreto Legislativo nº 95.461, de 11 de dezembro de 1987.
A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO PARA AS RELAÇÕES DE TRABALHO NÃO EMPREGATÍCIAS
Luiz Alberto de Vargas
Juiz do Trabalho do TRT 4ª R – RS
Nestes mais de sessenta anos da Justiça do Trabalho no Brasil, o grande debate a respeito de competência sempre se estabeleceu em torno do binômio relação de trabalho-relação de emprego. Antes da alteração de competência introduzida pela Emenda Constitucional nº 45, a Justiça do Trabalho somente era competente para apreciar e julgar dissídios envolvendo empregado e empregador. Assim, através de intenso e extenso debate doutrinal e jurisprudencial, consolidou-se o entendimento de que, por interpretação sistemática dos arts. 2º e 3º da CLT, a competência se restringia às relações de trabalho em que houvesse vínculo empregatício, definido este como sendo a “prestação de trabalho não eventual, por pessoa física, de forma subordinada e mediante remuneração”.
Assim, a definição de relação de emprego está bem assentada na doutrina e jurisprudência, mas o mesmo não se pode dizer da relação de trabalho. Não houve a mesma preocupação de estabelecer contornos claros, ainda que, em regra, possa-se apontar a definição de Maurício Godinho Delgado (Curso de Direito do Trabalho, LTr, p. 279) como sendo “todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada em uma obrigação de fazer consubstanciada em labor humano; refere-se, portanto, a toda modalidade de contratação de trabalho humano modernamente admissível”.
A título de resumo, podemos dizer que, tanto na relação de emprego como na relação de trabalho, a prestação de trabalho é feita necessariamente por pessoa física. Por outro lado, a relação de trabalho não é também de emprego quando falta um ou mais dos demais requisitos característicos da relação de emprego: a) não eventualidade do trabalho; b) subordinação do prestador ao tomador do serviço; c) onerosidade. Dizendo de outro modo, antes da Emenda Constitucional nº 45, a Justiça do Trabalho não era competente para as relações de trabalho em que a prestação fosse eventual, autônoma e/ou gratuita.
Os trabalhadores eventuais, de certa maneira, foram alcançados na prática pela competência trabalhista, na medida em que o art. XX da CLT fixou a competência para as (pequena empreitada). Assim, todo um expressivo contingente de trabalhadores eventuais (pedreiros, carpinteiros, alambradores, etc.) que laboram por obra certa já é da competência da Justiça do Trabalho, ainda que, não raro, destas relações resultem dissídios de natureza consumeirista e que são apreciados pela Justiça Estadual. Na prática, quando a ação é movida pelo trabalhador contra o consumidor final, este, normalmente, aciona a Justiça do Trabalho. Quando, no entanto, quem demanda é o tomador dos serviços, em geral, o faz na Justiça Estadual. Trata-se de um caso típico de competência concorrente, que se estabeleceu na prática, demonstrando claramente que uma relação de trabalho também pode ser uma relação de consumo.
Os trabalhadores voluntários também não são da competência da Justiça do Trabalho, exceto em casos de que este trabalho encubra uma relação de emprego, situação em que o juiz, com base no art. 9º da CLT, reconhece a situação de fraude e, reconhecendo a realidade contratual, declara a existência da relação de emprego. O mesmo ocorre em situações em que, através da simulação de contratos com fictícias pessoas jurídicas, busca-se descaracterizar a natureza empregatícia da relação contratual. O exemplo mais comum é o das pseudo-empresas de representação comercial, formadas muitas vezes apenas pelo próprio “representante” e sua espoca, tendo como sede o domicílio destes e que nada mais são do que tentativas de fraudar a legislação trabalhista.
A maior dificuldade na caracterização ou não do vínculo empregatício reside, justamente, no requisito da subordinação. No entendimento da doutrina, a subordinação exterioriza-se no fato de que “a atividade do empregado consistiria em se deixar guiar e dirigir, de modo que as suas energias convoladas no contrato, quase sempre indeterminadamente, sejam conduzidas, caso por caso, segundo os fins desejados pelo empregador.” (Orlando Gomes e Elson Gottschalk). Portanto, seria uma subordinação jurídica, externalizada pelas ordens e comandos dirigidos pelo empregador ou seus prepostos ao empregado, decorrente do poder de direção assegurado ao empregador.
Em outros países, outros conceitos foram utilizados para configurar o estado de dependência que tipifica a relação de emprego. Encontram-se expressões como “ajenidad” (espanhol), “dependência” (em oposição à independência ou autonomia) ou “trabalho por conta alheia” (em oposição ao “trabalho por conta própria”. Estes conceitos foram construídos no início do século passado e, de alguma forma, reproduzem as situações existentes à época do “fordismo”, das grandes concentrações fabris e da produção de massa. Tal situação alterou-se dramaticamente a partir dos anos setenta. Pressionados pela acirrada competição internacional desencadeada a partir da crise do modelo fordista, as empresas, adotando, em larga escala, a informática na linha produtiva e novos métodos organizacionais, alteraram profundamente as relações de produção, criando-se o chamado “modelo toyotista” ou de “automação flexível”. Tal modelo, adequado às novas exigências de mercado, de uma produção variada, voltado a um mercado volátil e exigente, é essencialmente poupador de mão-de-obra e empurra as empresas para uma concorrência sem fim na redução dos custos produtivos. Em resumo, do ponto de vista que interessa aqui, basta dizer que a redução dos custos trabalhistas passou a ser essencial ao novo modelo produtivo, passando as empresas a adotar estratégias de redução de pessoal (“downsizing”), flexibilização dos contratos laborais remanescentes, além de uma clara opção por fórmulas contratuais que desonerassem as empresas do pagamento de direitos trabalhistas e previdenciários. Operou-se o que convencionou chamar “fuga do direito do trabalho”.
O resultado foi a segmentação do mercado laboral que, grosso modo, foi dividido em duas porções: um “centro”, formado por poucos empregados remanescentes a que se reconhece os direitos tipificados na norma trabalhista; e uma “periferia”, numerosa, constituída por trabalhadores a quem não se reconhece a condição de empregado, sem direitos trabalhistas e com escassa ou inexistente cobertura previdenciária. Esta “fuga do direito do trabalho” assumiu variadas formas, mas se pode fixar em três tipos principais: a) contratação de “pessoas jurídicas” (PJs); b) terceirização e c) trabalho por conta própria.
Assistimos, hoje, uma verdadeira “fuga do direito do trabalho”, que se pode fixar em três tipos principais: a) contratação de “pessoas jurídicas” (PJs); b) terceirização e c) trabalho por conta própria.
Como a Justiça do Trabalho no Brasil reagiu a tal situação?
O primeiro e essencial debate foi, evidentemente, diferenciar as situações de fraude à lei, descobrindo-se, sob o manto formal da relação de natureza cível, uma real relação empregatícia, aplicando-se um dos princípios do direito laboral desde seus primórdios, o que se denominou “princípio do contrato realidade”. Já se mencionou esse labor doutrinário e jurisprudencial em relação às falsas PJs. O mesmo se pode dizer em relação às chamadas “terceirizações”, sejam estas lícitas ou ilícitas. No segundo caso, reconheceu-se a existência subjacente de uma relação de emprego, declarando-se a nulidade da contratação por empresa interposta. No primeiro caso, reconheceu-se a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços pelos créditos trabalhistas do empregado da empresa fornecedora de mão-de-obra. Finalmente, quanto ao falso “trabalho por conta própria”, a Justiça do Trabalho reconhecendo sua competência para declarar a existência ou não de uma relação de emprego, rejeitou a possibilidade de se afastar a incidência da norma trabalhista pela mera formalização de um contrato de trabalho autônomo, quando tal autonomia não ocorria na prática, pois se estava diante de verdadeira relação de emprego.
No entanto, à margem de situações de fraude à lei trabalhista, há de se reconhecer que foram criadas, na maré da “fuga da relação de emprego”, diversas situações que, realmente, escapam dos limites do direito laboral e que, assim, configuram relações novas, que transcendem as figuras previstas na lei trabalhista, mas que, essencialmente, dela muito se aproximam. Ali, continua presente a figura de um prestador de trabalho economicamente dependente –e, por isso, vulnerável-, ligado a um contrato de adesão de natureza civil, assimétrico e, em geral, não regulamentado por lei. Esse tipo de trabalhador, precário, desprotegido do ponto de vista trabalhista, sindical e previdenciário é, depois do desempregado, a principal vítima das novas relações de produção pós-fordistas. Ainda que seja, do ponto de vista sociológico e econômico, um trabalhador dependente, juridicamente não pode ser enquadrado como empregado, já que ausente a subordinação típica da relação empregatícia. Graças aos novos métodos de produção – e superado o estágio civilizatório em que os trabalhadores deveriam ser, dura e repressivamente, enquadrados na nova “disciplina produtiva”, indispensável ao desenvolvimento do incipiente capitalismo – já que não mais são necessárias “ordens” e “comandos de produção” para que cada trabalhador saiba e faça o que tem de fazer. O trabalhador, agora, tem o patrão “dentro de si”, mas continua dele dependendo para sobreviver (e, por isso, obedece às ordens sem que estas precisem ser exteriorizadas!).
Ressurge, assim, o trabalho em domicílio; cresce o trabalho “à distância” (ou tele-trabalho); prolifera o trabalho autônomo prestado a um único tomador, sob rígido controle deste (mas sem que se possa configurar a subordinação pessoal típica prevista na lei trabalhista); aparece o trabalho “em parceria” que somente beneficia um dos parceiros; revive-se, com algum temor, o retorno do trabalho fabril prestado no âmbito familiar (muitas vezes com utilização de mão-de-obra infantil); aumenta o trabalho cooperativado em que, ao contrário do que acontece em outros países, a remuneração do cooperativado é inferior a de um empregado nas mesmas condições; toma conta das profissões ditas liberais o chamado “trabalho free-lancer” ou “de colaboração”, essencial à atividade empresarial, prestado continuamente e sob estrito controle do tomador, mas que “escapa” da relação de emprego pela suposta “autonomia” do prestador “por conta própria”. A cada dia , surgem novas situações de trabalho precário, não previstas pelo legislador, criando-se legiões de trabalhadores desprotegidos: corretores de seguro; transportadores autônomos; corretores de imóveis; técnicos instaladores em domicílio; montadores de móveis, etc. Todos esses trabalhadores são pessoas físicas, que prestam serviço de forma não eventual mediante uma retribuição pecuniária, mas, a rigor, não são empregados, pois são qualificados como prestadores de “trabalho por conta própria”.
Urge, portanto, que se encontre uma solução justa para todos esses trabalhadores precários e que, pelo atraso de nossa ciência jurídica em relação às vertiginosas mudanças produtivas, restaram à margem do direito laboral.
Entende-se que a alteração do art. 114 da Constituição Federal, ampliando a competência da Justiça do Trabalho, é uma importante mudança de paradigma, que orienta para uma extensão para todos os trabalhadores da tutela até então restrita aos trabalhadores com vínculo empregatício. Tal extensão, em realidade, atende ao comando constitucional contido no art. 7º caput, da Constituição Federal, que elenca os direitos sociais devidos a todos os trabalhadores, urbanos e rurais – e não os restringe aos empregados. Em interpretação constitucional, não se pode entender que o legislador tenha utilizado palavras inócuas ou equivocadas ao determinar o universo de trabalhadores para os quais seriam destinados os direitos sociais contidos na Constituição Federal. Assim, o termo “trabalhadores”, contido no caput do art. 7o, não pode ser se resumir aos trabalhadores com vínculo empregatício, excluindo-se dos direitos sociais constitucionais a maioria dos trabalhadores brasileiros, que não possuem carteira assinada. Quando o constituinte fala em “trabalhadores”, quer se referir ao conjunto dos trabalhadores brasileiros, independentemente da caracterização jurídica da prestação dos serviços que prestam, beneficiando, assim, a totalidade dos brasileiros que dependam da retribuição do trabalho para satisfação de suas necessidades básicas. Tal interpretação é, sem dúvida, a mais consentânea com o espírito da “Constituição cidadã” que, recorde-se, elenca os direitos sociais no seu capítulo II.
Parece claro, assim, que o legislador constitucional incumbiu a Justiça do Trabalho – porque historicamente mais habilitada para fazê-lo – da missão de encontrar, dentro da própria realidade das novas relações de trabalho, um maior equilíbrio nos contratos de trabalho autônomo, em benefício de um contingente cada vez maior de trabalhadores precários. Esta parece ser ama tendência internacional. Conforme Alfredo Montoya Melgar, jurista espanhol: “La acción protectora del Derecho del Trabajo se ha extendiendo a sujetos que, en términos estrictos, se encuentram en una situación muy diferente de la del típico obrero subordinado a las órdenes del empresario” (MELGAR, Alfredo Montoya. “Sobre el trabajo dependiente como categoría delimitadora del Derecho del Trabajo” in VILALÓN, Jesús Cruz e Outros. “Trabajo subordinado y trabajo autónomo en la delimitación de fronteras del Derecho del Trabajo. Estudios en homenaje al Profesor Jose Cabrera Bazán “ Editora Tecnos, Madrid, 1999, p. 57). E mais adiante: “El gran desafío del Derecho del Trabajo está hoy en la reordenación de sus instrumentos de tutela y también en dar cumplida respuesta al problema de si puede continuar prescindiendo de la realidad social, dejando desprotegidos a prestadores de trabajo jurídicamente autónomos, en situación socioeconómica similar a los trabajadores, de modo que, dentro del “multiverso” del trabajo autónomo, se pueden concretar situaciones que no pueden dejar por completo a la regulación civil o comercial y a las que deben aplicarse de algún grado alguna de las técnicas de tutela propias del Derecho del Trabajo” (RODRIGUES PIÑERO, Miguel. “Contrato de Trabajo y autonomía del trabajador” in “VÁRIOS, “Trabajo subordinado y trabajo autónomo en la delimitación de fronteras del Derecho… ob. cit., p. 38).
TUTELA INIBITÓRIA COLETIVA E A PROTEÇÃO À SAÚDE DO TRABALHADOR
Rodrigo Trindade de Souza
Juiz do Trabalho Substituto do TRT 4ª R – RS
Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná
Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade do Brasil.
SUMÁRIO:
Introdução
1. Meio Ambiente do Trabalho e a preferência pela Neutralização do Risco
2. Tutela Coletiva na Defesa de Direitos e Interesses Individuais e Homogêneos
3. Legitimidade Ativa dos Sindicatos para a Defesa dos Interesses e Direitos Individuais Homogêneos no Processo do Trabalho
4. Tutela Inibitória
5. Aplicação da Tutela Inibitória Coletiva na Proteção da Saúde do Trabalhador
Conclusões
Referências Bibliográficas
INTRODUÇÃO
O presente estudo busca, inicialmente, identificar a recente (re)construção doutrinária da tutela inibitória e seu relacionamento com a proteção à saúde do trabalhador, operada no plano coletivo.
Em especial, buscará a localização da necessidade de busca de instrumentos processuais para a tutela das condições higiênicas de trabalho e neutralização do risco.
Nas inferições que serão levadas a efeito pretende-se analisar as necessidades coletivas de produção de meios aptos a resguardar a saúde do empregado e legitimidade para a atuação. Em específico, se verificará de que forma é possível tratar o resguardo das condições do meio ambiente laboral no plano da tutela coletiva inibitória.
Em estudo direcionado à situação proposta, serão identificados os elementos da tutela inibitória e as formas e requisitos de atuação coletiva processual dos trabalhadores.
A pretensão do estudo que aqui se desenvolverá não é a de esgotamento das inúmeras questões que envolvem a proteção jurídica da saúde do trabalhador ou as diversas formas e hipóteses de operacionalização da tutela inibitória coletiva, mas sim de tecer considerações sobre a forma como tais construções jurídicas podem ser aplicadas em relação às prementes necessidades de profilaxia de doenças laborais/ profissionais e acidentes do trabalho. O foco escolhido para tanto é a ação processual dos representantes dos empregados.
1. MEIO AMBIENTE DO TRABALHO E A PREFERÊNCIA PELA NEUTRALIZAÇÃO DO RISCO
O paradigma da proteção direcionada ao meio ambiente do trabalho transmuda-se seguindo o incremento da preocupação com a saúde do trabalhador. Na medida em que a sociedade organizada aumenta o grau de importância que outorga às condições de vida de quem trabalha, tornam-se menos tolerantes as condições de labor que pode o empregador oferecer em seu empreendimento.
Já não basta o cumprimento de paliativos, como o simples pagamento do adicional por condições higiênicas de trabalho deficientes. A tendência observada na segunda metade do século XX é a de preocupação primeira com o meio ambiente e busca de qualidade do local de serviço. A importância da profilaxia alcança o instrumento constitucional, direcionando todo o sistema jurídico para o modelo redimensionado[1].
Para a implementação desse novo paradigma da preferência pela neutralização do risco, o primeiro estágio é a compreensão da integralidade do meio ambiente e, daí, para o meio ambiente do trabalho. Nos termos do art. 200, VIII da Constituição Federal Brasileira, o meio ambiente do trabalho é parte integrante e indissociável do meio ambiente geral. Tal construção, já devidamente positivada, permite compreender a impossibilidade de se alcançar qualidade de vida sem que se possa ter qualidade de trabalho. Como efeito reflexo, também não se pode atingir meio ambiente equilibrado e sustentável, ignorando as condições do espaço de trabalho[2].
No caminho para a implementação em ações do paradigma da neutralização do risco, a análise das condições de trabalho deve ser efetuada na ótica paralela da completude e das particularidades. O meio ambiente do trabalho é parte da universalidade do meio ambiente geral, mas também se constitui num microssistema com partes próprias. A restrição dos riscos oferecidos pelo local de prestação de serviços obriga ao estudo dos diferentes fatores mais ou menos independentes de agressões que afetam a saúde e a integridade física do trabalhador.
A definição de responsabilidades para a concretização do objetivo de plena salubridade é mais um passo a ser tomado. A Constituição Federal assegura que a saúde é direito de todos e dever do Estado (art. 196). Como construção básica e geral, particularizando o princípio ao Direito do Trabalho, temos que a manutenção do ambiente de trabalho saudável é direito do trabalhador e dever do empregador. A livre iniciativa e o exercício do trabalho – outros princípios presentes na Carta Magna – devem se compatibilizar com os direitos fundamentais à saúde e à vida. Logo, a inferição imposta é a de que o trabalhador tem direito à redução de todos os riscos que afetem sua saúde no ambiente de trabalho.
O controle dos agentes prejudiciais à saúde serve tanto para evitar a produção
de acidentes de trabalho[3], como também de doenças profissionais[4] e doenças do trabalho[5]. Segundo Sebastião Geraldo de Oliveira, identifica-se a possibilidade de redução desejável (eliminação) e uma redução aceitável dos riscos (neutralização). A primeira significa a completa supressão do risco, ou seja, a eliminação do agente agressivo. A redução aceitável, porém, indica a limitação do agente agressor a níveis toleráveis pela saúde humana. O propósito primeiro da lei é a redução máxima, eliminando-se por completo o agente prejudicial. Apenas na impossibilidade técnica de se alcançar tal objetivo é que o empregador terá de reduzir a intensidade do agente prejudicial, de modo a torná-lo, ao menos, tolerável[6].
O estágio atual da saúde do trabalhador – a da qualidade de vida – obriga que se invista na profilaxia e satisfação pessoal na atividade profissional. Nesse sentido, no plano normativo internacional, a Organização Internacional do Trabalho (Através da Declaração de Alma-Ata, Kazaquistão, de 12.09.1978) esclarece que a saúde é um direito fundamental, e que a consecução do mais alto nível possível de saúde é a mais importante meta social mundial, cuja realização requer a ação de muitos outros setores sociais e econômicos, além do da saúde. Na mesma declaração, o organismo internacional também declara que a saúde do trabalhador não é simplismente a ausência de doença ou enfermidade, mas o completo bem-estar físico, mental e social. Os atos da OIT que se seguiram permanecem reafirmando o conceito de saúde do trabalhador e a necessidade de redução de condições de trabalho insalubres perigosas, independentemente de recebimento de adicional próprio[7].
Também o Código Civil estabelece, em seu art. 1.228, § 1º, que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais, de modo que seja preservado o equilíbrio ecológico e seja evitada a poluição.
Em suma, do conjunto normativo geral retiram-se duas conclusões sobre o tema. Primeiro, de que a saúde do trabalhador não significa simplesmente a ausência de doença, mas que o meio-ambiente de trabalho deva ser saudável, sem que represente qualquer afetação à saúde e à salubridade; objetiva-se que o local de trabalho favoreça o mais elevado nível possível de saúde física e mental. Segundo, de que cumpre não apenas ao Estado, mas também às empresas, e ao conjunto da sociedade, que se alcance um local de trabalho saudável[8].
A sistemática brasileira em relação às condições de trabalho insalubres e perigosas não segue a intenção normativa. Ordinariamente, paga-se o adicional respectivo para a condição de trabalho que deveria ser evitada e pouco se faz para subtração das más condições de higiene laboral. Mesmo o trabalhador, destinatário do direito ao meio-ambiente do trabalho saudável, deixa de reivindicá-lo, porque termina por se adaptar. Seja pela necessidade de manter o emprego, como porque tem interesse econômico no recebimento do adicional, como forma de complementação remuneratória.
Lamentavelmente, apesar das diversas normas de cunho principiológico que visam à produção de um meio-ambiente de trabalho saudável, a legislação trabalhista brasileira não estabelece determinações objetivas para que se substitua o pagamento do adicional pela extinção das condições insalubres ou perigosas. Como resultado prático, há apenas uma adição na remuneração do trabalhador (com o pagamento do adicional de insalubridade ou periculosidade), mas a permanência de um efetivo prejuízo à sua saúde.
O contrato de emprego em que tais condições se desenvolvem, muitas vezes segue o interesse dos contratantes, principalmente financeiros: o empregado recebe um aporte financeiro sobre seu salário, aumentando rendimentos e o empregador não precisa investir somas consideráveis para aperfeiçoamento do local de trabalho. Como estabelece o artigo 196 da Constituição Federal, a saúde é dever de todos e dever do Estado, que o exerce através de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos. O empresário é detentor desse dever no meio ambiente laboral, mas não o cumpre quando substitui a eliminação das más condições de trabalho pelo simples pagamento do adicional.
O pacto desenvolvido nessas condições não cumpre sua função social, na medida em que deixa de observar os interesses da coletividade de proporcionar saúde aos seus membros. O trabalho em más condições higiênicas não é apenas prejudicial ao indivíduo que conscientemente se submete a ela, mas ao conjunto da sociedade que eventualmente deverá suportar conseqüências econômicas de licenças médicas, aposentadorias precoces e tratamentos médicos dispendiosos.
Para que o pacto de emprego seja válido não basta que se alcancem os interesses individuais dos contratantes. É necessário que se atinja a destinação social do contrato de emprego e sejam cumpridas as determinantes constitucionais de outorga de um meio ambiente saudável. Para tanto é necessário que, não apenas sejam pagos os adicionais compensatórios para condições higiênicas deficientes, mas que se obre efetivamente para a redução e extinção desses elementos violadores ao direito a um meio-ambiente saudável[9].
2. TUTELA COLETIVA NA DEFESA DE DIREITOS E INTERESSES INDIVIDUAIS E HOMOGÊNEOS
Para a superação de deficiências no meio ambiente laboral, antes que maiores prejuízos sejam produzidos na saúde dos trabalhadores, é necessário um comprometimento coletivo no manejo dos instrumentos jurisdicionais.
A iniciativa individual do trabalhador para a adequação do local de trabalho a condições de mínima segurança e higiene é insuficiente. Primeiro, porque foge da razoabilidade o aforamento de demanda trabalhista individual durante o contrato, sujeitando o funcionário a retaliações, como a dispensa imediata. Mas principalmente, porque condições de trabalho com elementos de riscos e agressões dificilmente afetam um único ou poucos trabalhadores, mas quase sempre abrangem a uma coletividade de empregados.
O estado liberal clássico reconhecia apenas a tutela reparatória, inserida na obrigatoriedade do processo de conhecimento e na tripartição das eficácias sentenciais. Por motivos históricos, economicamente determinados, a tutela dos direitos coletivos não se mostrava, àquela época, adequada. Mas evoluiu a teoria contratual, acompanhando a formação do Estado Social e reconhecimento dos direitos de terceira geração, cujas características são a solidariedade e fraternidade. Uma das mais recentes vertentes de acesso à justiça é o reconhecimento das tutelas coletivas.
A atuação jurisdicional na defesa de interesses não meramente individuais dos trabalhadores refere-se à tutela dos chamados direitos e interesses metaindividuais[10]. Pressupõe-se que o contigente de pessoas atingidas por uma lesão, ou ameaça de lesão, não é de fácil identificação, mas existe a necessidade social de produção de decisão uniforme. O tipo de tutela jurisdicional pretendida, conseqüentemente, será diversa da buscada com a ação individual. Como regra geral, nas ações coletivas a pretensão buscada é de prevenção, ou seja, pretende-se evitar a ocorrência de lesão. Afasta-se, portanto, da característica da tutela meramente indenizatória ambicionada pela tradicional demanda individual.
O comprometimento coletivo na prevenção do dano efetua-se através dos órgãos de Estado habilitados e das entidades representativas de classe.
A tutela coletiva de direitos dos trabalhadores pode ser exercida pelo Ministério Público, por meio de ação civil pública[11] e ação civil coletiva[12]. No manejo de tais instrumentos, o MP age em nome próprio, exercendo função institucional. Nessa situação, a ação civil pública terá por objetivo a defesa de interesses difusos e coletivos, quando forem desrespeitados direitos trabalhistas constitucionalmente previstos[13]. Já a ação civil coletiva tem por objeto a defesa dos interesses individuais homogêneos, isto é, defesa coletiva de direitos individuais, de acordo com o art. 91 do Código de Defesa do Consumidor.
O pedido na ação civil pública compreende a imposição de obrigação de fazer ou não fazer (não descumprir certa norma ou abster-se de praticar determinada conduta) ou o pagamento de multa (art. 3º da Lei nº 7.347) para o Fundo de Amparo ao Trabalhador. O pedido na ação civil coletiva é de indenização a favor dos prejudicados. A ação civil coletiva – instrumento que reputamos ser de grande importância para subtração de condições higiênicas de trabalho deficientes – pode tanto ser proposta pelo Ministério Público do Trabalho, como pelos sindicatos, como se verá no próximo tópico.
3. LEGITIMIDADE ATIVA PARA A DEFESA DOS INTERESSES E DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS NO PROCESSO DO TRABALHO
O Direito do Trabalho surge, historicamente, da atuação coletiva dos trabalhadores na busca de melhores condições de trabalho e salário. Apesar de pouco desenvolvida na doutrina nacional – a qual prefere identificar o início do Direito do Trabalho no Brasil pelas iniciativas de positivação das décadas de 30/40 do século XX –, também em nosso país, as primeiras medidas de limitação à atuação empresarial junto aos empregados e estabelecimento de melhores condições gerais de trabalho coletivo ocorreram nas incipientes negociações coletivas entre representantes de Capital e Trabalho[14]. A idéia de legitimação dos sindicatos na defesa de interesses individuais homogêneos significa, em parte, uma retomada histórica de suas funções.
As relações jurídicas de trabalho, como tantas outras do sistema jurídico, produzem necessidades de tutelas tanto individuais como coletivas. Não apenas o trabalhador-pessoa, como uma coletividade de empregados pode sofrer ameaça ou violação de direitos. Tratam-se, no caso, de direitos metaindividuais, compreendidos como os que transcendem a singularidade do indivíduo.
A regulamentação das relações de trabalho se desenvolve intensamente de forma multinormativa paralela, fazendo atuar as esferas individual (contrato), pública (lei em sentido amplo) e coletiva (convenções e acordos coletivos). A necessidade identificada no mundo do trabalho de contínua pacificação entre capital e trabalho, organizados coletivamente, obriga a reconhecer maior grau de comprometimento e importância institucional de suas forças representativas.
Para a atuação coletiva dos trabalhadores, o legislador disponibilizou o instituto da substituição processual, de modo que pudessem os sindicatos – em casos autorizados por lei – reclamar a defesa de direitos da categoria, em nome próprio. A compreensão da necessidade de lei específica a indicar a possibilidade da substituição vem sendo fortemente renegada pela doutrina moderna:
“Acreditamos que o equívoco que se comete é atribuir aos sindicatos unicamente a função de substituto processual, instituto regulado pelo direito individual, quando na verdade pode e deve agir na qualidade de legitimado autônomo, assim como fazem as instituições associativas disciplinadas na Lei de Ação Civil Pública e Código de Defesa do Consumidor.
(…)
Não podemos negar a tutela aos direitos e interesses metaindividuais de natureza trabalhista à tutela jurisdicional sob a justificativa de que não há instrumento que a ela se aplique, mesmo porque só o art. 8o da Constituição Federal bastaria para ser incontroverso o reconhecimento de que não só é possível a tutela dos interesses metaindividuais, como são os sindicatos por excelência os legitimados à defesa de tais interesses e direitos.”[15]
Todo o microssistema trabalhista reconhece legitimidade ao sindicato para o aforamento da demanda inibitória: art. 3º do CPC, aplicado em sintonia com as determinações do art. 769 da CLT e art. 8º, III da CRFB/88. Com o cancelamento da Súmula nº 310 do TST, em outubro de 2003, afastam-se restrições interpretativas do art. 8º, III da Carta Magna[16] e ratifica-se o entendimento de que o sindicato tem legitimidade ampla para atuar na defesa dos direitos e interesses da categoria e da sociedade no afastamento de condições higiênicas de trabalho deficientes.
Assim, compartilha-se a conclusão de Thereza Christina Nahas no sentido de que, no processo coletivo, poderá o sindicato agir como legitimado autônomo, caso se tratar da defesa de direitos e interesses coletivos ou difusos, ou substituto processual coletivo, sempre que o interesse ou direito que se pretende tutelar for individual homogêneo. Aplica-se aqui a primeira regra do dispositivo constitucional, ou seja, pode o sindicato agir na defesa dos direitos e interesses coletivos[17].
A dúvida se coloca em relação aos interesses individuais homogêneos[18], espécie de direitos metaindividuais. Tratam-se de direitos relacionados a interesses individuais que, pela homogeneidade do objeto, possuindo fonte comum e muitos titulares, recomenda-se sejam tratados coletivamente. Não se identifica qualquer motivo a impedir o sindicato de também buscar a tutela de tais interesses: tratando-se de espécie de direitos metaindividuais, reclamando, por óbvio, a tutela coletiva.
Em virtude do tratamento outorgado pelo art. 91 do CDC, o sindicato, ao propor demanda para defesa de direitos e interesses individuais homogêneos da categoria, agirá como substituto processual. Todavia, tal substituição decorre da legitimação autônoma de que é portador, e não do sistema de legitimação ordinária e extraordinária regulada pelo processo individual. A figura, portanto, é a da substituição processual coletiva. Logo, não há necessidade de identificação dos substituídos e produção de sentença genérica com efeitos secundum eventum litis[19].
4. APLICAÇÃO DA TUTELA INIBITÓRIA COLETIVA NA PROTEÇÃO DA SAÚDE DO TRABALHADOR
Trata-se a tutela inibitória de novel instituto[20], introduzido na doutrina pátria a partir de estudos italianos. Luiz Guilherme Marinoni acusa o interdito proibitório e o mandado de segurança preventivo, dentre outros, como exemplos históricos de tutela inibitória[21].
Surge o provimento inibitório como forma de afastamento do dogma do Direito Romano de que a única tutela jurisdicional ao dano seria a sua indenização. Busca, portanto, a superação de valores do liberalismo burguês emaranhados no sistema jurídico, inclusive – senão principalmente – o temor da adjudicação de poderes ao juiz.
A opção pela cautelaridade, nas palavras de ARRUDA ALVIM, segue um modelo de superação ideológica, pois “para o burguês a demora não era um favor tão negativo, quanto veio a ser para as sociedades sucessivas[22]”. O instituto é reflexo inconteste das chamadas síndromes de ineficácia da sentença condenatória e do processo de conhecimento, os quais têm lastro ideológico em um sistema de tutela dos direitos fundados, exclusivamente, na preocupação com a restauração em pecúnia dos direitos violados.
O conceito do provimento inibitório cerca-se de uma nova dimensão de funções do Direito e do Judiciário. Para Marinoni, a tutela inibitória consiste na “tutela que tem por fim impedir a prática, a continuação ou a repetição do ilícito e não uma tutela dirigida à reparação do dano”[23]. É, portanto, a ação ou o incidente que tem por objetivo impedir a prática, a continuação ou a repetição de ato ilícito. Como se vê, a técnica da tutela inibitória é voltada para futuro e para a prevenção, e não para o passado e para a condenação. A inibição será obtida por meio da ação inibitória ou da tutela antecipada, de modo que o provimento se constituirá numa ordem que manifesta eficácia mandamental.
Embora redimensionada a partir de estudos do Processo Civil, a tutela inibitória tem ampla atuação em todos os ramos do Direito Obrigacional. Segundo Pozzolo, cabe aplicação aos direitos absolutos, enquadrando-se entre eles os trabalhistas; mas também pode ser invocada para a proteção dos direitos relativos, sendo indiferente a patrimonialidade ou não que possuam[24].
A necessidade de superação ou diminuição dos elementos insalubres e perigosos do local de trabalho encontra seu instrumento mais eficaz na ação processual com pedido inibitório.
Como analisado no início deste estudo, pouco interessa ao trabalhador e à sociedade o ressarcimento pelos prejuízos produzidos à saúde pelo ambiente de serviço inadequado. A opção do sistema é outro, o de evitar o prejuízo à integridade física e mental do indivíduo, adequando o local de trabalho, impedindo o prosseguimento de atividade nociva ou perigosa, fornecendo equipamentos de proteção e segurança, promovendo o afastamento de empregado do posto e até determinar o fechamento de determinado setor da empresa.
Diante da natureza de prevenção, não são requisitos da tutela inibitória a operação de danos presentes ou de culpa, mas a mera existência de uma situação objetiva apta a produzir prejuízo a outro. Diante da natureza dos direitos que se pretende tutelar, não existe razão para se exigir a prática de ato ilícito e ocorrência do dano para que, só então, se socorra do Poder Judiciário.
A tutela inibitória coletiva se mostra o instrumento jurídico mais propício à busca de um meio ambiente laboral saudável. Os atos de controle ambiental estão vinculados ao princípio da normalidade da causa e anormalidade do resultado[25]. Tal opção é mais do que uma aposta no bom senso, mas o encontro do paradigma da prevenção do dano – consubstanciado na possibilidade de lesão à saúde do trabalhador – com um direito essencialmente individual homogêneo – o direito a um meio ambiente de trabalho sadio pela coletividade dos trabalhadores de uma empresa ou setor.
Os legitimados a buscar a tutela inibitória coletiva, como se viu acima, serão o Ministério Público do Trabalho e os sindicatos. A importância desses titulares processuais no direito ao meio ambiente laboral saudável é enorme, mormente pela inferioridade econômica dos titulares do direito material. A legitimação dos órgãos de representação não é apenas uma opção de técnica processual, mas significa a provável única possibilidade de tutela aos interesses da coletividade afetada.
CONCLUSÕES
Não basta a proteção do trabalho como atividade. A necessidade que urge é a de implementação de medidas aptas à preservação daquele que produz o trabalho, o homem. O direito à saúde e à vida, instrumentalizados na proteção jurídica à saúde do trabalhador tem sua expressão máxima na tutela judicial de adequação do local de trabalho num ambiente o mais saudável possível.
A interpretação sistemática do direito concede ao Ministério Público do Trabalho e aos sindicatos diversas prerrogativas no combate às agressões ao meio ambiente do trabalho. Os resultados ainda são tímidos, mas tendem a aumentar na proporção de tomada de consciência de que a esses órgãos não basta a defesa de interesses puramente coletivos, mas também dos individuais homogêneos. Como refere Nahas, “é chegada a hora de os sindicatos agirem como entes organizados que são, na tutela dos interesses e direitos metaindividuais, promovendo uma tutela eficaz aos integrantes da classe[26]”.
A tutela inibitória coletiva é instrumento processual por excelência para que se alcance o objetivo de neutralização razoável ou eliminação dos elementos de risco ao meio ambiente de labor de um conjunto de empregados. O ordenamento jurídico brasileiro fornece todos os elementos e fundamentos necessários para a utilização da tutela preventiva contra condições de trabalho higienicamente inadequadas. Daí a premente necessidade de se difundir a utilização dessa forma de tutela, que muitas vezes é a única maneira de realização efetiva do direito material.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMORIM, Sebastião Luiz & OLIVEIRA, José de. Responsabilidade Civil. Acidente do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2003.
ARENHART, Sérgio Cruz. Perfiz da Tutela Inibitória Coletiva, in Temas Atuais de Direito Processual Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.
ARRUDA ALVIM. Anotações sobre alguns Aspectos das Modificações sofridas pelo Processo Hodierno entre nós in Estudos em Homenagem ao Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. São Paulo: Revista de Processo v. 25, nº 97, jan/mar, 2000, pp. 51-106.
COUTINHO, Aldacy Rachid. A Autonomia Privada: em busca da defesa dos direitos fundamentais dos trabalhadores. in SARLET, Ingo Wolfgang (organizador). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2. ed., 2006.
DEL CLARO, Roberto Benghi. A Tutela Inibitória na proteção ao Meio Ambiente. Revista de Direito Processual Civil, v. 19.
GAMA, Ricardo Rodrigues. O Passado da Tutela Inibitória no Brasil. Campinas: Revista Jurídica v. 15, nº1, 1999.
MARINONI, Luiz Guilherme. A Prova na Ação Inibitória. Curitiba: Revista de Direito Processual Civil Genesis, v. 7, n. 24, abril/junho 2002, pp. 318-323.
______. Tutela Inibitória: a tutela de prevenção do ilícito. Curitiba: Revista de Direito Civil Genesis, v. 1, nº 2, maio/agosto 1996.
MARTINS, Sérgio Pinto. Curso de Direito de Trabalho. Ed. Atlas, São Paulo, 2000.
MENDES, René. Patologia do Trabalho. Belo Horizonte: Atheneu, 2004.
NAHAS, Thereza Christina. Legitimidade Ativa dos Sindicatos. São Paulo: Atlas, 2001.
OLIVEIRA, José de. Acidentes do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 1997.
OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção Jurídica à Saúde do Trabalhador. 3. ed. São Paulo: LTr, 2001.
______. Responsabilidade Civil Objetiva por Acidente do Trabalho – Teoria do Risco. São Paulo: Revista LTr, ano 68, v. 4, 2004, pp. 405-416.
POZZOLO, Paulo Ricardo. Ação Inibitória Coletiva no Processo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001.
RÜDGER, Dorothée Suzanne. O Contrato no Direito Privado. Contribuições do Direito do Trabalho para a Teoria Geral do Contrato. São Paulo: LTr, 1999.
[1] Nesse sentido, a Constituição Federal Brasileira, art. 225: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
[2] OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção Jurídica à Saúde do Trabalhador. São Paulo: LTr, 2004, p. 127.
[3] Art. 19 da Lei nº 8.213/91: “Acidente de trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no incisso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.
[4] Também chamadas de “tecnopatias”, assim entendidas como as que se produzem ou desencadeiam pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério da Previdência Social. (art. 20, I, da Lei nº 8.213/91).
[5] Compreende-se por “doença do trabalho” a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I. (art. 20, II, da Lei nº 8.213/91).
[6] SALGADO, Op. Cit., p. 129.
[7] Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais. Art. 12. “Os Estados-Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental” (Aprovado na XXI Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 19.12.1966, com vigência no Brasil desde 24.04.1992 – Decreto nº 591, de 6.07.1992).
Convenção nº 155 da OIT: Art. 3º, “e”. “O termo Saúde com relação ao trabalho, abrange não só a ausência de afecções ou de doenças, mas também os elementos físicos e mentais que afetam a saúde e estão diretamente relacionados com a segurança e a higiene do trabalho.” (Convenção aprovada em 3.06.1981, com vigência no Brasil desde 18.05.1993).
Convenção nº 161 da OIT, sobre Serviços de Saúde do Trabalho (Aprovada em 17.02.1988, com vigência no Brasil desde 18.05.1991). A expressão “Serviços de Saúde no Trabalho” designa um serviço investido de funções essencialmente preventivas e encarregado de aconselhar o empregador, os trabalhadores e seus representantes na empresa em apreço, sobre I) os requisitos necessários para estabelecer e manter um ambiente de trabalho seguro e salubre, de molde a favorecer uma saúde física e mental ótima em relação com o trabalho; II) a adaptação do trabalho às capacidades dos trabalhadores, levando em conta seu estado de sanidade física e mental.
Diretiva do Conselho 89/391/CEEE, de 12.06.1989, relativa à aplicação de medidas para promove a melhora da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho. Princípios gerais: (…) d) Adaptar o trabalho à pessoa, em particular no que se refere à concepção dos postos de trabalho, assim como à escolha dos equipamentos de trabalho e do dos métodos de trabalho e de produção, com vistas em particular a atenuar o trabalho monótono e o trabalho repetitivo e a reduzir os efeitos dos mesmos na saúde.
[8] René Mendes indica diversos critérios que considera fundamentais para adoção de medidas capazes de eliminar ou neutralizar as condições que impliquem risco para a saúde e integridade física dos trabalhadores, e que vão da eliminação ou neutralização dos fatores de risco até a adequação do custo da ação à capacidade financeira da empresa. MENDES, René. Patologia do Trabalho. Belo Horizonte: Atheneu, 2004, pp. 786-787.
[9] “Assim, por exemplo, o trabalho em local insalubre não é juridicamente relevante só enquanto um adicional letal de 40%, 20% ou 10% sobre o salário mínimo, mas especialmente como um possível e eventual dano à saúde – direito fundamental – ou a revista não é só uma questão de poder ou sua limitação, mas a expressão da inviolabilidade do direito à vida privada e à intimidade – direito fundamental. A possibilidade de negociação, neste campo, deve ser extirpada, e a vontade reconhecida como inexistente. A manutenção da visão de contratualidade explicitada pela autonomia da vontade serve para esvaziar a teoria dos direitos fundamentais.” COUTINHO, Aldacy Rachid. A autonomia privada: em busca da defesa dos direitos fundamentais dos trabalhadores. in SARLET, Ingo Wolfgang (organizador). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006, 2a edição, p. 182.
[10] O Código de Defesa do Consumidor, didaticamente, relaciona as espécies de direitos metaindividuais indicando, em seu art. 81, parágrafo único que “a defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I. interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II. interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica de base; III. interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum”.
[11] Prevista no art. 129, III, da CRFB/88 e art. 83, III da Lei Complementar 75/93.
[12] Com previsão no art. 91 da Lei nº 8.078/90 e art. 83, I, da Lei Complementar 75/93.
[13] MARTINS, Sérgio Pinto. Direito Processual do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2000, p. 494.
[14] A observação é de Dorothée Suzanné Rüdger, tomada a partir de estudos da gênese do movimento sindical brasileiro (RÜDGER, Dorothée Suzanne. O Contrato no Direito Privado. Contribuições do Direito do Trabalho para a Teoria Geral do Contrato. São Paulo: LTr, 1999).
[15] NAHAS, Thereza Christina. Legitimidade Ativa dos Sindicatos. São Paulo: Atlas, 2001, p. 134.
[16] Até a Resolução 119/2003 (DJ 1º.10.2003) compreendia a Corte Trabalhista que, pela excepcionalidade da substituição processual, e sendo a norma constitucional de natureza genérica, haveria a necessidade de regulamentação do instituto. Admitia-se a substituição apenas ações de cumprimento, demandas de cobrança de FGTS e insalubridade.
[17] NAHAS, Op. Cit., p. 139.
[18] A identificação como direitos individuais puros ou homogêneos depende da casuística, analisando-se a origem do direito e da violação, bem como do universo de afetados.
[19] A improcedência da ação não produz coisa julgada que afete o indivíduo substituído.
[20] Discorda Ricardo Rodrigues Gama (O Passado da Tutela Inibitória no Brasil Campinas: Revista Jurídica v. 15, nº 1, 1999, p. 62), ao afirmar que, ainda que sob outra denominação, Pontes de Miranda (Tratado das Ações, t. 1), José Homem Corrêa Telles e Augusto Teixeira de Freitas (Doutrina das Ações) trataram do assunto. Indica ainda origem nas figuras do Mandado de Segurança Preventivo, Ação de Nunciação de Obra Nova, Ação de Abstenção, Ações Proibitórias, algumas com origem que remonta ao Direito Português.
[21] MARINONI, Guilherme. Tutela Inibitória: a tutela de prevenção do ilícito. Curitiba: Revista de Direito Civil Genesis, v. 1, nº 2, maio/agosto 1996, p. 46.
[22] ARRUDA ALVIM. Anotações Sobre alguns Aspectos das Modificações sofridas pelo Processo Hodierno entre nós. in Estudos em Homenagem ao Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. São Paulo: Revista de Processo v. 25, n. 97, jan/mar, 2000 p. 66.
[23] MARINONI, Op. Cit., p. 26.
[24] POZZOLO, Paulo Ricardo. Ação Inibitória no Processo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001, p. 201.
[25] DEL CLARO, Roberto Benghi. A Tutela Inibitória na Proteção ao Meio Ambiente. Revista de Direito Processual Civil, v. 19, p. 114.
[26] NAHAS, Op. Cit., p. 147.
REFLEXÕES SOBRE A EFETIVIDADE DO DIREITO FUNDAMENTAL DE PROTEÇÃO À SAÚDE DO TRABALHADOR: CUMULAÇÃO DOS ADICIONAIS DE INSALUBRIDADE E PERICULOSIDADE
Janaína Saraiva da Silva
Juíza do Trabalho Substituta do TRT 4ª R – RS
SUMÁRIO:
Introdução
1. O Direito a Proteção da Saúde do Trabalhador como Direito Fundamental
2. Sistemática Brasileira de Proteção à Saúde do Trabalhador
3. A Cumulação dos Adicionais de Insalubridade e Periculosidade como Forma de Efetividade do Direito
Fundamental de Proteção à Saúde do Trabalhador
Considerações finais
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo demonstrar a urgente necessidade de se imprimir efetividade ao direito de proteção à saúde do trabalhador, tal como previsto, especificamente, nos incisos XXII e XXIII do art. 7º da Constituição Federal.
Para tanto, procurar-se-á traçar um caminho a partir da concepção do direito de proteção à saúde do trabalhador como direito fundamental e as implicações daí decorrentes em termos de eficácia jurídica e social das normas constitucionais garantidoras de direitos desta natureza. De forma conjugada a tais conceitos se procurará abordar, especificamente no âmbito do Direito Laboral, a sistemática adotada pelo Brasil para a proteção à saúde do trabalhador e as diferenças entre trabalho insalubridade e trabalho perigoso, a fim de demonstrar que a efetividade do direito fundamental de proteção à saúde dos trabalhadores passa, necessariamente, pelo reconhecimento do direito à cumulação dos adicionais de insalubridade e periculosidade nas hipóteses em que o empregado trabalhe, simultaneamente, exposto a condições insalubres e periculosas.
A importância da questão objeto do presente estudo é inquestionável, haja vista as estatísticas assombrosas de doenças profissionais e acidentes do trabalho no Brasil. A maior oneração do empregador que explora atividade insalubre ou perigosa – pela sistemática adotada em nosso país como forma de proteção à saúde do trabalhador –, o levará a preferir a prevenção, eliminação ou neutralização dos diversos agentes nocivos que agridem a saúde dos trabalhadores.
Por fim, sem descuidar-se da problemática jurídica que a cumulação dos adicionais de insalubridade e periculosidade enseja, procurar-se-á indicar uma solução para o conflito existente entre as regras constitucionais de tutela à saúde do trabalhador e a norma infraconstitucional contida no parágrafo 2º do artigo 193 da CLT, aqui já adentrando na necessidade de uma nova postura do intérprete juslaboralista acerca dos direitos sociais, a partir da Constituição Federal de 1988.
1. O DIREITO A PROTEÇÃO DA SAÚDE DO TRABALHADOR COMO DIREITO FUNDAMENTAL
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º define a República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito[1], fundada na soberania, cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e no pluralismo político.
Em seu Título II trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, compartimentando-os em Capítulos: “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos” (Capítulo I, que compreende o art. 5º), “Direitos Sociais” (Capítulo II, que compreende os arts. 6º a 11), “Da Nacionalidade” (Capítulo III, que compreende os artigos 12 e 13), “Dos Direitos Políticos” (Capítulo IV, que compreende os arts. 14 a 16), “Dos Partidos Políticos” (Capítulo V, que compreende o art. 17)[2].
O direito do trabalhador à proteção da saúde está calcado nos princípios fundamentais do Título I da Carta Política de 1988, em seus incisos III (dignidade da pessoa humana) e IV (valor social do trabalho), e nos direitos e garantias fundamentais do Título II, em seu Capítulo II (caput e incisos XXII, XXIII e XXVIII)[3] e, ainda, por se constituir em desdobramento de outro direito fundamental, qual seja, o direito fundamental à saúde (artigos 196 a 200 da Constituição Federal).
Com efeito, entende-se que o direito à proteção da saúde do trabalhador constitui-se, de fato, em espécie ou desdobramento do direito fundamental lato à saúde, de natureza fundamental e estendido a todos os cidadãos brasileiros no art. 6º da Constituição Federal de 1988, de forma genérica, bem como nos arts. 196 a 200 do mesmo diploma legal[4].
Assim, o direito de proteção à saúde do trabalhador clarifica-se em duas esferas:
lata, como desdobramento do direito fundamental à saúde, haja vista que proteção à saúde é a própria concretização do direito à saúde; específica, no âmbito das relações capital-trabalho, engajada na proteção reservada aos trabalhadores no artigo 7º da Constituição Federal de 1988.
Conclui-se, portanto, que o direito de proteção à saúde do trabalhador constitui-se em direito fundamental – seja como desdobramento do direito fundamental lato à saúde, seja como direito fundamental social específico nas relações privadas entre capital e trabalho – e, como tal, deve ser encarado pelo legislador e pelos juslaboralistas sempre que necessário debruçar-se sobre questões que envolvam trabalho em condições insalubres e periculosas, em especial no sentido de obter-se, do ordenamento jurídico, a maior aplicabilidade e eficácia possível para garantir o direito fundamental de proteção à saúde do trabalhador[5] e, ainda, a atribuição de eficácia necessária aos princípios da dignidade da pessoa humana[6] e da valoração social do trabalho.
2. SISTEMÁTICA BRASILEIRA DE PROTEÇÃO À SAÚDE DO TRABALHADOR
2.1. Evolução histórica das normas de proteção à saúde do trabalhador
Ainda que não seja objeto do presente estudo a questão específica da evolução histórica das normas de proteção à saúde do trabalhador, uma abordagem ainda que restrita da questão é indispensável, haja vista a condição do homem como ser em um determinado momento histórico, bem como a evolução dos direitos do homem a partir deste determinado momento histórico, por ele vivenciado.
A preocupação com a saúde dos trabalhadores não é nova, seja na ordem internacional ou nacional. A caminhada, todavia, é árdua e permanece em constante evolução, em especial diante do hiato existente entre o reconhecimento do direito de proteção à saúde do trabalhador (de natureza fundamental, como já tratado), no âmbito das Constituições das nações, em especial, para nós, pela Constituição Federal de 1988, e sua efetividade.
Desde os primeiros estudos com escopo de abordar e defender a importância e a necessidade de proteção da saúde dos trabalhadores, pelos grandes mestres que compreenderam a importância do tema, em tempo distante e longínquo, até o início da produção legiferante dos Estados com o escopo de proteger a saúde do trabalhador já se vão cinco séculos[7]. Por certo que o advento da Revolução Industrial – alterando o panorama produtivo europeu e apoiando-se em um modelo econômico que coloca o capital em escala de valor superior ao trabalhador e sua saúde, dando início ao surgimento de novas e graves doenças do trabalho, em especial diante da introdução da máquina no modelo produtivo, com a decorrente modificação das condições de trabalho manual até então preponderantes no sistema de produção – e o desenvolvimento o sistema capitalista, em muito contribuíram para a morosidade da concepção da valoração da saúde do trabalhador como direito fundamental. Não obstante, paulatinamente compreendeu-se a necessidade de proteção à saúde do trabalhador, idéia por certo agregada a partir da concepção marxista da força de trabalho como um dos fatores de produção.
Em termos Constitucionais, ainda que anteriormente alguns textos constitucionais já abrigassem importantes direitos dos trabalhadores (Suíça, 1874; França, 1848), segundo Arnaldo Süssekind a Constituição Mexicana de 1917 “foi a primeira a armar um quadro significativo dos direitos sociais do trabalhador, muitos dos quais foram repetidos nas Cartas Magnas de alguns países latino-americanos”[8].
O Tratado de Versalhes, firmado em 28.06.1919 e ratificado em 10.01.1920, assinado pelas potências européias após a Primeira Guerra Mundial, foi decisivo como fonte das Constituições do entre-guerras, enumerando princípios fundamentais do Direito do Trabalho, muitos deles diretamente vinculados à proteção à saúde do trabalhador[9], e instituindo a Organização Internacional do Trabalho-OIT para realizar estudos e elaborar convenções e recomendações destinadas a universalizar a justiça social.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 1948, trouxe luzes ao cenário protetivo do trabalhador, estabelecendo em seu artigo XXIII que
I) Todo o homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.(…) III) Todo o homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como a sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social[10] (grifou-se).
A partir da Declaração Universal, e também após o advento da 2ª Grande Guerra, vários sistemas legislativos passaram a incorporar, paulatinamente, direitos de proteção à saúde dos trabalhadores.
No Brasil, remonta a 1891, com o Decreto nº 1.313, o primeiro ato legislativo a
demonstrar preocupação com a saúde dos trabalhadores, quando o Governo instituiu, para a Capital da República, a fiscalização permanente dos estabelecimentos fabris onde trabalhassem menores em grande número, fixando em sete horas, prorrogáveis até nove, a jornada de trabalho dos menores e proibindo o trabalho noturno aos menores de 15 anos[11].
Seguiram-se algumas leis esparsas, as quais não serão aqui enumeradas por fugir ao escopo do presente trabalho, cabendo citar apenas aquelas mais relevantes para o presente estudo. Em 1940 foi publicado o Decreto-lei nº 2.162, que inseriu no mundo jurídico o adicional de insalubridade, em seus graus mínimo, médio e máximo.
Em 1943, com a Consolidação das Leis do Trabalho, a saúde do trabalhador recebeu tratamento especial, tendo a si dedicado um capítulo inteiro (Capítulo V, arts. 154 a 223), o qual atualmente conta com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 6.514, de 22 de dezembro de 1977.
Foi, contudo, a Constituição Federal de 1946 que ampliou as garantias e direitos dos trabalhadores, incluindo a matéria de higiene e segurança do trabalho em seu art. 157 (inciso VIII), posicionamento também adotado pela Constituição Federal de 1967 (art. 158, inciso IX). Em 1955 foi instituído o adicional de periculosidade, garantido aos trabalhadores em contato com inflamáveis (Lei nº 2.573), em 1973 foi assegurado o mesmo adicional para os trabalhadores em contato com explosivos (Lei nº 5.880), e em 1985 foi estendido o direito ao adicional de periculosidade para os trabalhadores em energia elétrica. Fundamental destacar que em 1978 foi editada a Portaria nº 3.214, com 29 Normas Regulamentadoras concernentes à segurança e medicina do trabalho.
Com a Constituição Federal de 1988 a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (inciso XXIII do art. 7º), o direito a “adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei” (inciso XXIII do art. 7º), e o direito “a seguro contra acidente de trabalho, a cargo do empregador” (inciso XXVIII do art. 7º) definem status de direito fundamental à proteção à saúde do trabalhador.
2.2. A sistemática brasileira de proteção – crítica e adequação
A evolução histórica nacional das normas de proteção demonstra que o Brasil, por meio de seu sistema legal, sempre conjugou duas sistemáticas a fim de buscar proteger à saúde do trabalhador naquilo que diz respeito às agressões decorrentes do trabalho em condições insalubres e perigosas: estabelecimento de regras a serem observadas pelo empregador com o fito de neutralizar ou eliminar a presença de agentes geradores de insalubridade no trabalho (várias disposições nesse sentido têm acento no capítulo de Segurança e Medicina do Trabalho da Consolidação das Leis do Trabalho), inclusive mediante fiscalização do Ministério do Trabalho; oneração do empregador que explora atividade que exponha os trabalhadores a condições penosas, insalubres e periculosas, mediante fixação de adicionais de remuneração em benefício dos empregados, o que também atua como forma de compensação pela agressão física ou psíquica a que estão sujeitos[12].
Importante destacar que Sebastião Geraldo de Oliveira aborda tal questão como “estratégias básicas” adotadas para combate às agressões à saúde do trabalhador[13]. Opta-se, todavia, em qualificar como sistema de proteção em face de sua positivação, uma vez que legalmente previstos na legislação constitucional (art. 7º, incisos XXII e XXIII) e infraconstitucional (Capítulo V da CLT). Catharino se refere a normas legais de proteção de duas naturezas: as primeiras de natureza assistencial, preventiva ou higiência; as segundas de natureza compensadora ou retributiva[14].
Sem embargo da nomenclatura utilizada, Sebastião Geraldo de Oliveira observa a existência de três estratégias básicas no direito comparado em face dos agentes agressivos, salientando desde logo aquela que, em seu entender, seria a melhor indicada:
a) aumentar a remuneração para compensar o maior desgaste do trabalhador (monetização do risco): b) proibir o trabalho; c) reduzir a duração da jornada. A primeira alternativa é a mais cômoda e a menos inteligente, a segunda é a hipótese ideal, mas nem sempre possível e a terceira representa o ponto de equilíbrio cada vez mais adotado. Por um erro de perspectiva, o Brasil preferiu a primeira opção desde 1940 e, pior ainda, insiste em mantê-la, quando praticamente o mundo inteiro já mudou de estratégia[15].
Não obstante os brilhantes ensinamentos do mestre mineiro, parece que deixa o juslaboralista de considerar que o Brasil, além da fixação de adicional de remuneração para atividades insalubres e perigosas (adoção da monetarização do risco), também estabelece um vasto número de procedimentos a serem observados pelo empregador-empresário no desenvolvimento de sua atividade econômica, desde a submissão à inspeção prévia de seu estabelecimento, com possibilidade de interdição, passando pela instituição de Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (CIPA) e pela obrigatoriedade de fornecimento de equipamentos de proteção individual, passando até o estabelecimento de normas cogentes, uma vez que passíveis de penalização por meio de multa, a serem observadas em atividades específicas ou em atividade com agentes específicos (edificações, iluminação, conforto térmico, instalações elétricas, movimentação, armazenagem e manuseio de materiais, máquinas e equipamentos, caldeiras, fornos e recipientes sob pressão, prevenção da fadiga, para citar apenas aquelas referidas no capítulo V da CLT).
A relevância das normas gerais de segurança e medicina do trabalho é inquestionável na sistemática adotada pelo Brasil, não apenas no âmbito da relação empregado-empregador, mas também pelo caráter social que tais normas revelam. A questão vem sendo objeto de estudo, também, no que concerne à exigência de sua observância por parte do tomador de serviços relativamente ao empregado contratado por empresa interposta, exatamente em decorrência de sua relevância social. Não há, todavia, espaço para o desenvolvimento do referido tema nesse estudo, em que pese sua relevância social e jurídica[16].
Não se questiona, aqui, que a sistemática ideal seja, efetivamente, a adoção de jornada reduzida para aqueles empregados que laboram em condições insalubres e perigosas, caminho já adotado por vários países, dentre eles os irmãos sul-americanos Argentina e Paraguai, porquanto também se comunga de tal entendimento, agregado à vedação do labor em jornada extraordinária pelos trabalhadores nessas condições. No aspecto, importante destacar que várias nações anteriormente adeptas à sistemática da monetização do risco, dentre elas Itália e Alemanha, percebendo que ela levava ao efeito inverso – por total ignorância dos trabalhadores eles optavam exatamente pelo trabalho em condições insalubres ou de risco, a fim de perceber remuneração superior –, promoveram campanhas por seus trabalhadores contra a sistemática “compensatória”, com base no princípio inquestionável de que “saúde não se vende”.
A problemática da monetarização do risco é por demais relevante e, por certo, merecedora de um estudo particular, que não se pretende fazer aqui, ante o fôlego do presente trabalho. No entanto, se fazia necessária sua explanação, ainda que de forma singela, a fim de demonstrar que a sistemática adotada pelo Brasil não é a ideal, mas sendo a existente, cabe aos juslaboralistas torná-la mais efetiva, no sentido de recepcionar o direito fundamental de proteção à saúde do trabalhador. Para tanto, entende-se que um dos caminhos indicados seja o pagamento, de forma cumulada, dos adicionais de insalubridade e periculosidade aos trabalhadores que labutam simultaneamente expostos aos dois agentes agressores, pois somente assim teremos uma efetiva oneração do empregador-empresário, capaz de levá-lo a preferir eliminar ou neutralizar os agentes agressores no ambiente de trabalho[17].
2.3. Adicionais de remuneração – penosidade, insalubridade e periculosidade
Antes de se aprofundar o que se optou por denominar de adequação da sistemática nacional de proteção à saúde do trabalhador, de forma a recepcionar plenamente os princípios e direitos fundamentais constitucionalmente previstos, impõe-se explanar, ainda que concisamente, os tipos de agressões a que estão sujeitos os trabalhadores em condições penosas, insalubres e periculosas, em especial estes dois últimos, enfoques principais do presente estudo. A partir de tal exame também é relevante destacar a diferença entre trabalho insalubre e trabalho perigoso, porquanto crucial para a adequação que se tentará propor.
O trabalho em condições penosas ainda não restou normatizado em sua especifidade, porém doutrinariamente vem sendo definido como aquele em que o agente agressivo é o próprio trabalho, em razão de sua natureza, e não um agente externo. Está juridicamente regulamentado apenas para os servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais[18], e para fins previdenciários[19].
O trabalho insalubre é definido no art. 189 da CLT como aquele que “por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos”[20].
Quanto ao trabalho periculoso, optou o legislador por qualificá-lo concretamente a definí-lo, estabelecendo o art. 193 da CLT que “São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem o contato permanente com inflamáveis ou explosivos em condições de risco acentuado[21]”. A lei nº 7.369, de 20 de setembro de 1985, regulamentada pelo Decreto nº 93.412, de 14 de outubro de 1986, estendeu o direito ao adicional de periculosidade aos trabalhadores do setor de energia elétrica, em condições de periculosidade. Por fim, o Ministério do Trabalho, por meio da Portaria nº 3.393, de 17 de dezembro de 1987, acrescentou o anexo 3 na NR-16, estabelecendo as atividades ou operações perigosas com radiações ionizantes ou substâncias radioativas.
Tanto a insalubridade quanto a periculosidade têm sua caracterização e classificação a partir das normas do Ministério do Trabalho (art. 195 da CLT), em especial a Portaria nº 3.214, de 08 de junho de 1978[22].
Não obstante as semelhanças entre o trabalho prestado em condições insalubres e perigosas (agressão à saúde dos trabalhadores e forma de regulamentação), são flagrantes as diferenças entre um e outro, seja no aspecto técnico ou normativo, o que é fundamental para se compreender, ainda que embrionariamente, a importância da defesa ao direito de cumulação dos adicionais aos trabalhadores que laborem, concomitantemente, em condições insalubres e periculosas.
A primeira e grande diferenciação entre trabalho insalubre e trabalho periculoso é a forma de agressão sofrida pelo trabalhador, conforme propiciada por agente insalubre ou perigoso. O trabalho insalubre é aquele que afeta ou causa danos à saúde, provocando doenças, em face da agressão de agentes físicos, químicos ou biológicos. As agressões geradas pela insalubridade, normalmente, são percebidas em longo prazo, na medida em que o agente insalubre vai minando as resistências do organismo humano paulatinamente. Já o trabalho periculoso pode levar à incapacidade ou morte súbita.
Nesse sentido, é lapidar a lição de Sebastião Geraldo de Oliveira:
O ambiente de trabalho expõe o empregado a riscos, tanto aqueles mais visíveis que afetam a sua integridade física (agentes periculosos), quanto aqueles mais insidiosos que atuam a longo prazo, minando, paulatinamente, sua saúde (agentes insalubres). Os primeiros provocam os acidentes de trabalho, enquanto estes últimos acarretam as doenças profissionais ou do trabalho[23].
Por demais relevante, ainda, as palavras de Antonio Carlos Vendrame, que não obstante a formação técnica e exatamente por tal circunstância, aborda a questão sob o mesmo enfoque:
Não existe qualquer relação de semelhança entre os adicionais de insalubridade e periculosidade, cada um remunerando uma situação distinta de exposição do trabalhador. Enquanto o adicional insalubridade responde pelos danos à saúde do trabalhador, geralmente provocados por doenças do trabalho ou profissionais, o adicional periculosidade remunera o risco de acidentes; aquele compreende o agente que age de forma insidiosa e contínua, este, ao contrário, é o infortúnio, o segundo que pode ceifar a vida do trabalhador[24].
Assim, pode-se dizer que os adicionais correspondentes a cada uma das agressões (insalubridade e periculosidade) tutelam bem jurídicos diversos. O adicional de insalubridade tutela, em primeiro plano, a saúde do trabalhador, buscando compensar eventuais danos a ela impostos pela atividade laboral. O adicional de periculosidade, por sua vez, tutela a própria vida, pois tem por um de seus objetivos onerar o empregador que, pela natureza da atividade que explora, apresente risco à vida do trabalhador, visando compensar danos ocasionais à integridade física do trabalhador exposto a agentes ou locais perigosos.
Tal demonstra, portanto, que os adicionais de insalubridade e periculosidade têm pressupostos fáticos diversos. Por isso se diz que um ambiente de trabalho sadio é um ambiente isento de agentes insalubres. Já um ambiente de trabalho seguro é aquele isento de periculosidade.
Importante lição, no aspecto, dedica Regina Célia Buck, ao referir que “A periculosidade se distingue da insalubridade, porque esta, enquanto não houver sido eliminada ou neutralizada, afeta continuadamente a saúde do trabalhador; já a periculosidade corresponde apenas a um risco, que não age contra a integridade biológica do trabalhador, mas que, eventualmente (sinistro), pode atingi-lo de forma violenta”[25].
A segunda diferença entre a insalubridade e a periculosidade pode ser captada pelos próprios artigos de lei que as qualificam (189 e 193 da CLT, respectivamente), porquanto a insalubridade se vincula diretamente à habilidade agressiva do agente e com o tempo de exposição do trabalhador a tal agressão. A periculosidade, tendo em vista seu caráter de risco potencial, não se vincula ao tempo de exposição, haja vista que o sinistro pode ocorrer a qualquer momento[26]. Assim, o adicional de periculosidade é devido ao obreiro em razão do perigo a que se expõe, e não pelo tempo de exposição.
A terceira diferença entre a insalubridade e a periculosidade é que a primeira apresenta graus de agressividade, de acordo com a nocividade do agente, qualificando-se a insalubridade em graus mínimo, médio e máximo, correspondendo cada um, e de forma progressiva, a adicional remuneratório em montante diverso. A periculosidade, haja vista a potencialização do risco no mesmo nível, independentemente do agente agressor, não possui graduação, sendo da mesma ordem para todos os agentes agressores.
Por fim, a quarta diferenciação fundamental entre insalubridade e periculosidade é que a primeira pode, tecnicamente, ser eliminada ou neutralizada, seja pela utilização de equipamentos de proteção individual, seja pela adoção de medidas que conservem o ambiente de trabalho dentro dos limites de tolerância. A periculosidade, todavia – em que pese a disposição contida no art. 194 da CLT, que por sua redação permitiria ao intérprete entender pela possibilidade de eliminação do risco à integridade física do trabalhador –, nos termos da NR-16[27], não pode ser eliminada por equipamentos de proteção individual ou coletivos sem a substituição dos produtos inflamáveis por produtos não-inflamáveis ou alteração das condições de trabalho que eliminem as atividades perigosas e as áreas de risco.
Aqui, importante destacar que ao contrário da interpretação formulada por alguns doutrinadores, dentre eles Sérgio Pinto Martins[28], entende-se que o art. 194 da CLT limita-se a estabelecer que o empregado não tem direito à incorporação à remuneração do adicional de periculosidade recebido na hipótese de cessar o seu trabalho em exposição a agentes ou em local perigoso. Não traduz a norma, portanto, a amplitude que lhe dedica parte da doutrina, no sentido de que a periculosidade poderia ser eliminada.
Diante de tantos elementos a evidenciarem a diferenciação entre as agressões sofridas pelos trabalhadores em decorrência do labor em condições insalubres e perigosas, não há como se admitir permaneça a idéia de que o empregado que trabalha exposto a ambos agentes, simultaneamente e na mesma jornada de trabalho, tenha que optar pelo recebimento de um ou outro adicional, mormente por tal posicionamento implicar infração direta ao direito fundamental de proteção à saúde do trabalhador, considerando-se a sistemática brasileira adotada de fixar adicional de remuneração como forma de onerar o empregador, estimulando-o, assim, a neutralizar ou eliminar os agentes agressores no ambiente de trabalho.
Nesse sentido, entende-se que o reconhecimento ao direito do trabalhador de perceber cumuladamente os adicionais de insalubridade e periculosidade, nas hipóteses em que labute exposto a agentes insalubres e perigosos simultaneamente, é forma de estender-se eficácia aos princípios da dignidade da pessoa humana e da valoração social do trabalho, insculpidos na Constituição Federal de 1988, bem como se estender efetividade ao direito fundamental à saúde do trabalhador.
3. A CUMULAÇÃO DOS ADICIONAIS DE INSALUBRIDADE E PERICULOSIDADE COMO FORMA DE EFETIVIDADE DO DIREITO FUNDAMENTAL DE PROTEÇÃO À SAÚDE DO TRABALHADOR
3.1. Breves considerações sobre a eficácia das normas constitucionais
Já é uníssona entre os operadores do sistema normativo e, em especial, entre os constitucionalistas, a idéia de que a Constituição Federal de 1988 causou verdadeira revolução no ordenamento jurídico nacional, tendo em vista seu caráter eminentemente programático e a valoração dos princípios, garantias e direitos fundamentais, assumindo caráter normativo do qual há muito se ressentia a sociedade brasileira, por suas Constituições anteriores. Também é uníssona a idéia de que o momento atual, em que pese o reconhecimento constitucional de princípios, garantias e direitos fundamentais, ressente-se de eficácia das normas constitucionais, a fim de atingir-se, em casos concretos, a efetividade necessária para o fortalecimento do Estado Democrático (e Social) de Direito, tal como a própria Carta Maior define a República Federativa do Brasil.
O momento é de extrair-se das normas constitucionais, a partir da qual se sustenta toda a pirâmide de normas jurídicas, atuando como seu vértice, a máxima eficácia possível. É chegado o momento de imprimir-se às normas constitucionais aquilo que os empresários denominam de “qualidade total”, por meio da busca da maior efetividade possível dos valores por ela apanhados.
Para prosseguir o estudo, impõe-se uma abordagem, ainda que breve e tão-somente como forma de assentar bases para conclusões posteriores, da noção de eficácia da norma jurídica, seja pelo enfoque jurídico, seja pelo enfoque social.
A partir dos referidos enfoques já é possível mencionar a diferenciação atualmente aceita pela doutrina entre eficácia e efetividade, sendo a primeira nomenclatura mais utilizada para se referir à eficácia da norma em seu aspecto jurídico, e a segunda (efetividade) para se referir à eficácia social da norma[29]. Assim, diz-se eficácia quanto à possibilidade de uma determinada norma gerar efeitos jurídicos próprios. Fala-se, todavia, em efetividade quando relacionado à aplicação concreta da norma, quando seus efeitos jurídicos potenciais são aplicados.
Nessa linha, ressalta Ingo W. Sarlet que
é preciso qualificar em que sentido pretendemos valer-nos da expressão ‘eficácia’, ressaltando que esta costuma ser vinculada à noção de aplicabilidade das normas jurídicas. Por outro lado, corrente a distinção entre as noções de eficácia jurídica e social, identificando-se esta última com o conceito de efetividade[30].
Segundo José Afonso da Silva, a eficácia jurídica da norma está em sua qualidade para produzir efeitos jurídicos, ao passo que sua eficácia social ou efetividade vincula-se à conduta de acordo com a norma, ou seja, a norma realmente aplicada e obedecida.
Partindo de tais noções de eficácia jurídica e social, preocupa-se o presente estudo em demonstrar que a cumulação dos adicionais de insalubridade e periculosidade aos trabalhadores que laborem expostos, simultaneamente, a agentes insalubres e perigosos, partindo-se da sistemática brasileira adotada para proteção da saúde ao trabalhador, é forma de imprimir-se eficácia social (ou efetividade) aos princípios da dignidade da pessoa humana e da valoração do trabalho, bem como ao direito fundamental de proteção à saúde do trabalhador, o que representa, antes de uma necessidade, um dever.
3.2. A efetividade enquanto dever
Segundo Luís Roberto Barroso, citado por Sebastião Geraldo de Oliveira,
a efetividade significa a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social[31].
O Direito se concretiza a partir de sua efetivação na ordem social, pois dela emana e para ela deve retornar, como forma de assegurar os pressupostos do sistema democrático de direito. Sem embargo da importância das normas programáticas, mormente por considerada a concepção já dominante em nossa doutrina de que as normas (princípios e regras) atinentes a direitos e garantias fundamentais são de aplicação imediata, por força do disposto no § 1º do art. 5º da Constituição Federal[32], cabe ao intérprete da ordem jurídica extrair das normas constitucionais a maior efetividade possível, mormente em se tratando de direitos fundamentais de defesa[33].
Parece evidente, assim, que é dever dos exegetas do sistema jurídico-normativo a busca pela efetividade das normas constitucionais afetas a garantias e direitos fundamentais, ao que não lhes é permitido tergiversar ou mesmo sucumbir, mantendo entendimentos já arraigados pelo ranço histórico e que não mais possuem assento diante da nova ordem constitucional.
É por meio da interpretação, mediante métodos da hermenêutica jurídica, e aqui não se fala apenas na tipologia tradicional segundo os métodos de interpretação (gramatical, lógico, sistemático, teleológico e histórico), mas também a partir dos princípios instrumentais de interpretação constitucional (princípio da supremacia da Constituição, princípio da presunção de constitucionalidade das leis e atos do poder público, princípio da interpretação conforme a Constituição, princípio da unicidade da constituição, princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade, princípio da efetividade) e os princípios constitucionais materiais (princípios fundamentais, gerais e setoriais)[34], sem os quais já não é possível a compreensão do sistema jurídico nacional, uma vez que todo ele sedimentado sob a base de uma Constituição forte e renovadora.
O que se impõe, portanto, é deixar-se de lado as formas de interpretação tradicional, ainda que elas tenham assento garantido na conjugação com os princípios interpretativos constitucionais, a fim de se atingir os valores constitucionalmente erigidos como fundamentais.
Tal procedimento exige coragem, por certo, mas dele não se pode afastar o intérprete, sob pena de, possuindo um “aparato de última geração” (Constituição Federal), preferir a utilização de um mecanismo já desgastado e que já não mais corresponde aos anseios da sociedade.
Brilhante é a lição de Barbosa Moreira, citada por Sebastião Geraldo de Oliveira:
Se nos acostumarmos a dar aos nossos problemas, por tempo considerável, as mesmas soluções, há forte probabilidade de que pelo menos alguns de nós encarem com pouco entusiasmo o desafio de procurar novas soluções ou – pior ainda – de enfrentar novos problemas. (…) Manifesta-se em alguns setores da doutrina e da jurisprudência, certa propensão a interpretar o texto novo de maneira que ele fique tão parecido quanto possível com o antigo[35].
A questão mais se justifica quando se aborda a necessidade de vinculação dos juízes e Tribunais aos direitos fundamentais e suas garantias. O ordenamento jurídico aponta a ferramenta, por meio do controle de constitucionalidade, não podendo o Poder Judiciário desconsiderá-lo no momento de seus julgamentos.
Novamente a brilhante lição é de Ingo W. Sarlet:
No que concerne à vinculação aos direitos fundamentais, há que ressaltar a particular relevância da função exercida pelos órgãos do Poder Judiciário, na medida em que não apenas se encontram, eles próprios, também vinculados à Constituição e aos direitos fundamentais, mas que exercem, para além disso (e em função disso) o controle da constitucionalidade dos atos dos demais órgãos estatais, de tal sorte que os Tribunais dispõem – consoante já se assinalou em outro contexto – simultaneamente do poder e do dever de não aplicar os atos contrários à Constituição, de modo especial os ofensivos aos direitos fundamentais, inclusive declarando-lhes a inconstitucionalidade. É neste contexto que se tem sustentado que são os próprios Tribunais, de modo especial a Jurisdição Constitucional por intermédio de seu órgão máximo, que definem, para si mesmos e para os demais órgãos estatais, o conteúdo e sentido ‘correto’ dos direitos fundamentais[36].
Nada justifica a atitude do Poder Judiciário Trabalhista em negar o direito dos trabalhadores ao recebimento dos adicionais de insalubridade e periculosidade de forma cumulada, na hipótese de labor em condições insalubres e perigosas simultaneamente, furtando-se assim ao dever de imprimir efetividade ao direito fundamental de proteção à saúde do trabalhador.
Importante destacar que não se desconhecem as clássicas teorias quanto à classificação das normas jurídicas a partir de sua aptidão para gerar efeitos no mundo jurídico ou social[37], mas também não se desconhece que a doutrina atual é praticamente unânime em sustentar, por força da normatividade das normas constitucionais, que estas sempre apresentam uma carga mínima de eficácia, em seu núcleo. Tratando-se de normas que se refiram aos direitos fundamentais, inclusive os sociais, por força do disposto no § 1º do art. 5º da Constituição Federal de 1988, alguns doutrinadores chegam a defender a eficácia plena.
Nessa linha, novamente Ingo W. Sarlet:
Convém recordar, ainda, que no capítulo reservado aos direitos fundamentais sociais em nossa Constituição foram contempladas algumas posições jurídicas fundamentais singulares (pela sua função preponderantemente defensiva e por sua estrutura jurídica) aos tradicionais direitos de liberdade, como plasticamente dão conta os exemplos do direito de livre associação sindical (art. 8º) e do direito de greve (art. 9º), normas cuja aplicabilidade imediata parece incontestável, o que, por outro lado, também se aplica a diversos dos direitos dos trabalhadores elencados no art. 7º e seus respectivos incisos. Por estas razões, há como sustentar, a exemplo do que tem ocorrido na doutrina, a aplicabilidade imediata (por força do art. 5º, § 1º, de nossa Lei Fundamental) de todos os direitos fundamentais constantes do Catálogo (arts. 5º a 17), bem como dos localizados em outras partes do texto constitucional e nos tratados internacionais.[38]
3.3. A vedação do § 2º do art. 193 da CLT
Como já referido no item anterior, nada justifica a manutenção do entendimento, atualmente pacífico na doutrina e na jurisprudência[39] de impossibilidade de cumulação dos adicionais de insalubridade e periculosidade, que não o apego à norma contida no § 2º do art. 193 da CLT, a qual entende-se, por todas as reflexões feitas até aqui, não tenha outro destino que não a declaração de inconstitucionalidade.
A fim de melhor abordar a problemática posta, impõe-se, primeiramente, compreender a regra em questão, na medida que alguns juslaboralistas, ainda que em número bem reduzido, chegam a defender a idéia de que ela expõe uma faculdade, a ser exercida pelo trabalhador.
Dispõe o art. 193 da CLT:
São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem o contato permanente com inflamáveis ou explosivos em condições de risco acentuado. §1º O trabalho em condições de periculosidade assegura ao empregado um adicional de 30% (trinta por cento) sobre o salário sem os acréscimos resultantes de gratificações, prêmios ou participações nos lucros da empresa. § 2º O empregado poderá optar pelo adicional de insalubridade que por ventura lhe seja devido. (grifou-se)
A partir de tal redação, dissente-se do entendimento acima referido, porquanto não se trata de faculdade do empregado optar ou não pelo recebimento cumulado, o que contraria inclusive o bom senso, pois nenhum trabalhador optaria por receber apenas um adicional, caso lhe fosse facultado receber os dois. Com efeito, ainda que a redação do artigo acima transcrito não seja das mais felizes, não há como se questionar que ele é único, ainda que se compartimente em caput e parágrafos, de onde se conclui que o § 2º complementa o caput e o parágrafo anterior, os quais se restringem ao labor em condições perigosas, nada referindo quanto ao trabalho em condições insalubres. Poderia se admitir a alegada interpretação se o § 2º se constituísse em artigo isolado, o que o tornaria aplicável aos dois adicionais previstos na Seção XIII – “Das Atividades Insalubres e Perigosas”.
De qualquer sorte, uma simples abordagem histórica da vedação à cumulação dos adicionais permite concluir que desde a primeira previsão do adicional de periculosidade no ordenamento jurídico já veio atrelada a vedação à sua cumulação com o adicional de insalubridade, que fora previsto anteriormente.
O adicional de insalubridade foi instituído pelo Decreto-Lei nº 2.162, de 1º de maio de 1940 (art. 6º), sendo previsto quando da edição da Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943). O adicional de periculosidade, por sua vez, foi primeiramente previsto pela Lei nº 2.573, de 15 de agosto de 1995, aos trabalhadores que exercessem atividades em contato permanente com inflamáveis, e já em seu art. 5º havia previsão no sentido de que “Os trabalhadores beneficiados pela presente Lei poderão optar pela quota de insalubridade que porventura lhes seja devida”[40].
A “cultura da não-cumulação”, portanto, deriva da origem da norma que instituiu o adicional de periculosidade, porém já quando da publicação da Lei nº 6.514, de 22 de dezembro de 1977, que alterou a redação do Capítulo V do Título II da CLT, relativo à segurança e medicina do trabalho, já se podiam sentir manifestações de discordância às regras então mantidas quanto aos adicionais de insalubridade e periculosidade.
Nessa linha, vale transcrever trecho da Mensagem nº 111, de 1977, publicada no Diário do Congresso Nacional, de 02 de novembro de 1977 (Mensagem nº 409/77, na origem), onde Arnaldo Prieto, então Ministro do Trabalho, apresenta já na exposição de motivos do então Projeto de Lei nº 25, de 1977-CN (que deu origem a Lei nº 6.514/77) a insatisfação dos trabalhadores com o tratamento dado à matéria:
Uma das inovações de relevo concerne ao restabelecimento do direito do trabalhador de receber os adicionais de insalubridade e de periculosidade desde a inclusão da respectiva atividade nos quadros a respeito aprovados. Evidentemente, esse ressarcimento estará sujeito à prescrição bienal; mas, porque a regra sugerida importa na revogação do Decreto-lei nº 389, de 26 de dezembro de 1968, esclareceu-se em disposição transitória, que ele terá por limite a data da vigência da lei ora proposta. Releva ponderar, a propósito, que o pagamento dos adicionais somente a partir do ajuizamento da reclamação na Justiça do Trabalho tem sido criticado tanto pela jurisprudência como pela doutrina, havendo mesmo pronunciamentos no sentido de sua inconstitucionalidade. Das 1.064 sugestões recebidas no curso da revisão da CLT e da sua legislação complementar, foi este o tema que reuniu o maior número de críticas, especialmente das entidades sindicais[41]. (grifou-se)
Ainda que não haja referência expressa na exposição de motivos, por certo que a vedação à cumulação dos adicionais foi uma das questões mais criticadas, mormente em se tratando de críticas originárias de entidades sindicais, que desde aquela época e até os dias atuais permanecem na luta pela possibilidade de cumulação dos adicionais.
A negativa da essência da própria norma, ou seja, a vedação nela contida, não parece, portanto, a melhor forma de desconsiderá-la.
Todavia, impõe-se destacar o entendimento relevante de alguns doutrinadores, dentre eles Sebastião Geraldo de Oliveira e Célia Regina Buck, no sentido de que o § 2º do art. 193 da CLT estaria revogado pela Convenção nº 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil[42], e que em seu art. 11 dispõe:
Art. 11. Com a finalidade de tornar efetiva a política referida no art. 4 da presente Convenção, a autoridade ou as autoridades competentes deverão garantir a realização progressiva das seguintes tarefas: (…); b) a determinação das operações e processos que serão proibidos, limitados ou sujeitos à autorização ou ao controle da autoridade ou autoridades competentes, assim como a determinação das substâncias e agentes aos quais estará proibida a exposição no trabalho, ou bem limitada ou sujeita à autorização ou ao controle da autoridade ou autoridades competentes; deverão ser levados em consideração os riscos para a saúde decorrentes da exposição simultânea a diversas substâncias ou agentes”[43]. (grifou-se)
Parece evidente que se levar em consideração o risco para a saúde do trabalhador derivado da exposição “simultânea a diversas substâncias ou agentes” passa pelo direito não apenas da cumulação dos adicionais de insalubridade e periculosidade, mas também, e aí já se teria tema para um novo trabalho, pela cumulação de vários adicionais de remuneração, um para cada agente insalubre ou periculoso a que esteja o trabalhador exposto no curso de sua jornada de trabalho[44].
A idéia de revogação do § 2º do art. 193 da CLT mais se reforça, nos dias atuais, a partir do disposto no § 2º do art. 5º da Constituição Federal, segundo o qual “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. No aspecto, importante destacar que vem a doutrina e a jurisprudência se inclinando por uma interpretação extensiva ao § 2º do art. 5º da Constituição Federal, para abranger não apenas Tratados Internacionais em que o Brasil seja parte, mas também Convenções Internacionais ratificadas pelo Brasil. Tal matéria, no entanto, por si só já justificaria novo estudo, inclusive por sua relevância, em especial no âmbito do Direito do Trabalho, tendo em vista o vasto número de Convenções da Organização Internacional do Trabalho-OIT ratificadas pelo Brasil[45].
Acalentadoras, portanto, as palavras do Ministro do Supremo Tribunal Federal Sepúlvida Pertence, em voto proferido na Adin nº 1.675-1, acolhido pelo Plenário do STF em 24.09.97, em especial por se referir, especificamente, aos direitos sociais:
Os direitos sociais dos trabalhadores, enunciados no art. 7º da Constituição, se compreendem entre os direitos e garantias constitucionais incluídas no âmbito normativo do art. 5º, § 2º, de modo a reconhecer alçada constitucional às convenções internacionais anteriormente codificadas no Brasil[46].
O objetivo do presente estudo, todavia, não se limita a apontar o direito à cumulação dos adicionais de insalubridade e periculosidade a partir da revogação do § 2º do art. 193 da CLT pela Convenção nº 155 da OIT, mas sim acrescentar um novo elemento, que talvez até conjugado com o primeiro, espanque qualquer dúvida acerca do entendimento até então mantido pelos juslaboralistas quanto à impossibilidade de cumulação, qual seja, o poder-dever do Poder Judiciário de imprimir efetividade aos princípios da dignidade da pessoa humana e da valoração social do trabalho, bem como ao direito fundamental de proteção à saúde do trabalhador, por meio da declaração de inconstitucionalidade do § 2º do art. 193 da CLT.
3.4. A norma constitucional de direito fundamental e possibilidade de limitação por norma infraconstitucional
O direito fundamental de proteção à saúde do trabalhador está previsto em nosso ordenamento constitucional a partir de dois dispositivos específicos, ambos sediados no art. 7º, que prevê como direitos dos trabalhadores: “XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; XXIII – adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei”.
Como se vê, mantém o constituinte originário a sistemática brasileira de longos anos quanto aos mecanismos utilizados para a proteção à saúde do trabalhador, estabelecendo regras genéricas de saúde, higiene e segurança com o fito de reduzir os riscos inerentes ao trabalho e, ainda, onerando o empregador que explora atividade que exija, da parte de seus empregados, labor em condições insalubres e perigosas.
Nessa linha, cabe a primeira constatação: o inciso XXIII assegura aos trabalhadores adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, sem qualquer restrição. O fato de o legislador ter utilizado o termo “ou” não implica idéia de alternância (do tipo “um ou outro”), mas tão-somente forma de escrita utilizada para fazer indicação de três adicionais em um mesmo inciso. Não há a idéia de exclusão, mas sim de enumeração.
Nesse sentido já decidiu o Tribunal Superior do Trabalho (RR 668361/2000.7) com relação aos adicionais de insalubridade e penosidade, ao entender que o inciso XXIII não apresenta qualquer restrição ao recebimento de forma cumulada de tais adicionais. Na mesma decisão, porém, e de forma totalmente descompassada com a interpretação feita da norma constitucional, sustenta que a não-cumulação restringe-se aos adicionais de insalubridade e periculosidade, por força do § 2º do art. 193 da CLT.
Vale transcrever excerto da ementa do referido acórdão:
COMPENSAÇÃO – ADICIONAL DE PENOSIDADE – O art. 193 da CLT cuida especificamente do adicional de periculosidade e no § 2º permite ao empregado fazer a opção pelo adicional de insalubridade, não tendo relação com o adicional de penosidade. O inciso XXIII do art. 7º da Constituição Federal apenas prevê o adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei. Desse modo, não se vislumbra a pretensa violação aos dispositivos legal e constitucional invocados, na medida em que um e outro não tratam da cumulatividade de pagamento de adicionais. Recurso não conhecido[47].
Ao que tudo indica, os juslaboralistas sentem-se “engessados” pelo § 2º do art. 193 da CLT, todavia esquecem que se trata de norma infraconstitucional que, por colidir frontalmente com o texto constitucional e, em especial, com direito fundamental assim expressamente declarado na Carta Maior, não tem outro destino que não a declaração de inconstitucionalidade.
No aspecto, importante ressaltar que a doutrina admite restrições ao conteúdo das normas constitucionais, ainda que elas se refiram a direitos fundamentais, seja pela própria Constituição Federal, seja, em se tratando de norma constitucional de eficácia contida ou limitada, por norma infraconstitucional.
Tal limitação é mais amplamante admitida quando se trata de direitos prestacionais (também denominados direitos sociais de natureza positiva), haja vista sua relevância econômica e o que a doutrina denomina do limite da “reserva do possível”. Na hipótese em exame, todavia, não se examinam direitos fundamentais de tal natureza, tendo em vista que todos os direitos sociais são de natureza subjetiva-negativa e, portanto, ainda que previstos em norma constitucional de eficácia contida ou limitada, admitem apenas restrição por parte de norma infraconstitucional, mas nunca sua própria negação.
Com efeito, as normas constitucionais de eficácia contida apresentam um campo de reserva ao legislador infraconstitucional, admitindo restrição quanto à integralidade de seu efeito, todavia, tal restrição não pode extrapolar a reserva a ponto de implicar a própria negativa do direito assegurado pela Constituição.
O § 2º do art. 193 da CLT, ao vedar a cumulação dos adicionais de insalubridade e periculosidade, faz exatamente isso, ou seja, nega ao trabalhador o direito de receber um deles nas hipóteses em que tem direito a receber os dois. A partir de sua aplicação, o direito fundamental constitucionalmente reconhecido é negado, o que não se pode admitir em se tratando de limite imposto pela legislação infraconstitucional.
Impõe-se, assim, afastar-se a norma esdrúxula, que nega efetividade ao princípio de proteção à saúde do trabalhador, tendo em vista que os adicionais de remuneração, como já demonstrado, compõem um dos vértices da sistemática adotada pelo Brasil para implementar a proteção à saúde do trabalhador.
3.5. A solução: negativa de aplicação do § 2º do artigo 193 da CLT em face de sua manifesta inconstitucionalidade
Já demonstrado que o § 2º do art. 193 da CLT extrapola o limite da reserva de restrição admitido às normas infraconstitucionais, e demonstrada a necessidade e o dever de imprimir-se máxima efetividade ao inciso XXIII do art. 7º da Constituição Federal, como forma de maximizar-se a proteção à saúde do trabalhador, cumpre uma solução capaz de adequar a problemática a partir dos padrões jurídicos existentes.
A forma é conhecida de todos e está radicada no sistema do controle difuso de constitucionalidade adotado no Brasil, por meio do qual é permitido, no curso de qualquer ação, seja argüida ou suscitada a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo (municipal, estadual ou federal). A questão pode ser levantada por qualquer das partes no curso da ação, bem como pelo Ministério Público e também, de ofício, pelo Juiz. Destaca-se, no que pertine à possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de ofício pelo juiz, entender-se, a partir de conteúdo já examinado, tratar-se não apenas de faculdade, mas de dever.
A importância e a relevância do controle difuso de constitucionalidade é muito
bem explicitado por Lenio Luiz Streck, mormente diante da ligação feita pelo referido autor entre o controle difuso de constitucionalidade e a necessidade da interpretação das normas infraconstitucionais na conformidade da Constituição. Vale transcrever suas palavras:
Desse modo, ao contrário do que ocorre na maioria dos países da Europa – que, no pós-guerra, estabeleceram Tribunais Constitucionais com a tarefa de controlar a constitucionalidade, onde a questão da inconstitucionalidade é julgada per saltum (exceção feita a Portugal, que manteve, ao lado do controle concentrado, preventivo e sucessivo, o controle difuso) – no Brasil qualquer juiz de direito de primeira instância pode deixar de aplicar uma lei, se entende-la inconstitucional. Note-se: o juiz singular não declara a inconstitucionalidade de uma lei; apenas deixa de aplicá-la, isto porque somente na forma do art. 97 da CF é que pode ocorrer a declaração de inconstitucionalidade. (…) Com efeito, o controle difuso de constitucionalidade, mantido até hoje inclusive em países como Portugal, retira do órgão de cúpula do Poder Judiciário o monopólio do controle de constitucionalidade, servindo de importante mecanismo de acesso à justiça e, conseqüentemente, à jurisdição constitucional. A importância do mecanismo do controle difuso mostra-se absolutamente relevante, uma vez que permite que juízes de primeiro grau e Tribunais em suas composições plenárias, mediante incidente de inconstitucionalidade devidamente suscitado, realizarem a filtragem constitucional, que vai desde a simples expunção de um texto inconstitucional até a correção de textos através dos institutos da interpretação conforme a Constituição e da inconstitucionalidade parcial sem redução de texto[48]. (grifos no original)
A matéria atinente ao controle de constitucionalidade no Brasil, por si só, exigiria estudo específico, o qual, todavia, não tem espaço no presente trabalho.
Relevante destacar, todavia, em especial como forma de finalização, que já vão longe os estudos acerca da influência constitucional no ordenamento jurídico como um todo, ou seja, não somente na seara das relações entre particular e Estado, mas também nas relações entre particulares, movimento que tem sido denominado de constitucionalização do Direito Privado.
Nessa linha, por inarredáveis os conflitos entre as normas constitucionais e aquelas reguladoras da vida civil, entre particulares (Código Civil Brasileiro), por demais relevante a conclusão de Jorge Renato dos Reis quanto ao caminho da inconstitucionalidade das segundas em se tratando de direitos fundamentais, sempre que perfectibilizado o conflito, no caso concreto:
O fenômeno da constitucionalização do direito privado, determina que se dê vigência imediata aos direitos fundamentais estabelecidos constitucionalmente, para tanto, naqueles casos em que já há lei infraconstitucional positivando, não resta dúvida da sua aplicabilidade deva ser imediata nas relações interprivadas; naqueles casos, outros, em que ainda não há legislação infraconstitucional a implementar a efetivação do direito fundamental, ou mesmo, naqueles casos em que a norma positivada infraconstitucional está a impedir a efetivação do direito fundamental, defende-se a possibilidade de aplicação direta dos direitos fundamentais, a título de controle de constitucionalidade. Para isto, ou seja, para permitir a efetivação e a concretização dos direitos fundamentais nas relações provenientes do direito privado, é necessário que a magistratura esteja realmente comprometida com essa efetivação, ‘consciente da dimensão político-social da jurisdição, a qual tem outros escopos além do estritamente jurídico[49].
Como demonstrado, detendo-se a “ferramenta” adequada (controle de constitucionalidade) para se dar plena vigência ao inciso XXIII do art. 7º da Constituição Federal de 1988, não há como se admitir a permanência da interpretação clássica, arraigada na superioridade do capital e no descaso com a saúde dos trabalhadores, que se confronta diretamente não apenas com o direito fundamental de proteção à saúde do trabalhador, mas com os princípios basilares da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho, insculpidos em nossa renovadora Carta Política.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que se pretendeu com o presente estudo foi demonstrar, a partir de uma série de premissas, a imperiosa necessidade de imprimir-se eficácia ao direito fundamental de proteção à saúde do trabalhador por meio do reconhecimento ao direito da percepção dos adicionais de insalubridade e periculosidade, de forma cumulada, nas hipóteses em que ele se ative, simultaneamente, em condições insalubres e periculosas.
Para tanto, circundou-se vários universos: desde o reconhecimento do direito de proteção à saúde do trabalhador como direito fundamental derivado do direito lato à saúde, passando-se pelo estudo da sistemática brasileira adotada para a proteção à saúde do trabalhador, pelo reconhecimento da necessidade de imprimir-se maior efetividade possível às normas constitucionais garantidoras de direitos fundamentais – dentre elas aquelas concernentes a proteção à saúde do trabalhador, ao que não se pode furtar o exegeta ante o dever da interpretação em conformidade com a Constituição –, pelo reconhecimento da inadequação da disposição contida no § 2º do art. 193 da CLT – ante a extrapolação da reserva de restrição permitida ao legislador infraconstitucional e ao confronto com a norma constitucional –, até o estudo da existência do mecanismo adequado para negar-se aplicabilidade à vedação à cumulação dos adicionais, por meio do controle de constitucionalidade.
O presente estudo, no entanto, não se limita à cumulação dos adicionais de insalubridade e periculosidade, em que pese a prevalência deste enfoque. Pretende, ainda, e talvez de forma presunçosa diante de seus modestos fundamentos, servir de reflexão aos intérpretes e aplicadores do direito, no sentido de encorajá-los a uma nova prática interpretativa, onde a Constituição Federal seja vista como o vértice de todo o sistema jurídico-normativo não apenas de forma programática, mas também dotada de eficácia jurídica e social, orientadora portanto, tal como bússula ao intérprete desorientado que, cansado do lugar-comum, objetiva novos tempos.
[1] A respeito da constituição da República Federativa do Brasil como Estado Democrático e Social de Direitos ver Ingo W. Sarlet. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, pp. 67-72; e Idem. Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br/form_revista.asp?busca=Ingo%20Wolfgang%20Sarlet>. Acesso em: 20 fev. 2006.
[2] Não são poucas as críticas na doutrina especializada quanto ao grande número de direitos e garantias inseridas no Título II da Constituição Federal de 1988, sob a denominação de fundamentais, ante o risco de vulgarização dos direitos de tal natureza.
[3] Artigo 7º da CF/1988 – “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…) XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; XXIII – adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei; (…); XXVIII – seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.”
[4] Valentim Carrion, ao comentar o capítulo V da CLT (Da Segurança e Medicina do Trabalho) refere-se expressamente ao art. 196 da Constituição Federal: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” CARRION, Valentim. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 29.ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
[5] Quanto à aplicabilidade e efetividade dos direitos fundamentais ver SARLET, Ingo. W. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
[6] Segundo Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, “O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo (…) A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência.” BARROSO, L. R; BARCELLOS, A. P. O Começo da História. A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro In: BARROSO, Luís R. (Org.). A Nova Interpretação Constitucional: Ponderações, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: RENOVAR, 2003, p. 372.
[7] O primeiro autor a abordar a relação saúde-trabalho de que se tem notícia, em 1.556, foi o saxão Georg Agrícola, a partir do trabalho de mineradores em extração de outro e prata. Em 1.700, o médico italiano Bernardino Ramazzini lança o livro “De Morbis Artificium Diatriba” (“As Doenças dos Trabalhadores”), obra que representou um marco na luta pela Medicina Preventiva e foi referência em matéria da saúde do trabalhador até por volta do Século XIX, quando do advento da Revolução Industrial. Para evolução legislativa no direito nacional e comparado sobre questões atinentes à saúde dos trabalhadores, ver BUCK, Célia R. Cumulatividade dos adicionais de insalubridade e periculosidade. São Paulo: LTr, 2001.
[8] SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Constitucional do Trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 13.
[9] Dentre os vários princípios fundamentais do Direito do Trabalho instituídos pelo Tratado de Versalhes estão a noção de que o trabalho não deve ser considerado mercadoria (princípio da dignidade do trabalho humano); a previsão de serviço de inspeção para assegurar a aplicação das leis e regulamentos de proteção aos trabalhadores.
[10] Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/ textos/integra.htm. Acesso em: 20 fev. 2006.
[11] A estipulação de jornada de trabalho reduzida é de salutar importância para a saúde do trabalhador, conforme será abordado mais adiante no corpo do trabalho, sendo que em alguns países a fixação de jornada reduzida para os trabalhadores em condições insalubres e perigosas é forma de materialização do direito à saúde do trabalhador. Alguns doutrinadores, dentre eles Sebastião Geraldo de Oliveira, defende a jornada reduzida como melhor forma de proteção à saúde dos trabalhadores. Cf. OLIVEIRA, Sebastião G. Proteção Jurídica à Saúde do Trabalhador. São Paulo: LTr, 1996.
[12] A fixação de adicionais de remuneração aos trabalhadores em atividades insalubres ou perigosas é conhecida como “monetização” ou “monetarização” de risco e é fortemente contestada pela maior parte dos juslaboralistas. Dentre seus defensores, os argumentos são no sentido de que o adicional de remuneração permitiria uma alimentação mais saudável por parte dos trabalhadores expostos ao risco, propiciando uma melhor defesa do organismo e, ainda, que o ônus para o empregador levaria a melhoria das condições de trabalho, como fito de ser evitado. Os oposicionistas destacam, todavia, que uma alimentação “mais adequada” em pouco contribui quando se trata de munir o organismo contra agentes agressores, que sendo alto o custo para eliminação ou neutralização dos agentes agressores, preferem os empregadores custear o adicional de remuneração e, ainda, que os trabalhadores são levados a preferir o trabalho insalubre em busca de maior remuneração, mormente nos países de baixo padrão salarial. In: OLIVEIRA, Sebastião G. Proteção Jurídica à Saúde do Trabalhador. São Paulo: LTr, 1996, pp. 111-112.
[13] OLIVEIRA, Sebastião G. op. cit., p. 111.
[14] CATHARINO, Martins J. Tratado Jurídico do Salário.
[15] OLIVEIRA, Sebastião G. op. cit., pp. 111-112.
[16] No aspecto, recomenda-se a leitura de Arion Sayão Romita, para quem “Tais normas participam do caráter de leis administrativas. São promulgadas por motivos de política industrial, impostas pelo Estado por motivos superiores de segurança pública. Importam limitação à garantia de liberdade de indústria e representam emanação do poder de polícia exercido pelo Estado em proveito da coletividade. Os beneficiários da aplicação dessas normas são, principalmente, os trabalhadores, porém, mediatamente, a própria comunidade tem interesse em sua estrita observância. Basta considerar que as conseqüências do acidente do trabalho e da doença profissional afetam toda a coletividade. Entre outras considerações, avultam os ônus que pesam sobre a previdência social”. ROMITA, Arion S. Direito do trabalho: temas em aberto. São Paulo: LTr, 1998, p. 177.
[17] Ainda que seja inequívoca a posição de Sebastião Geraldo de Oliveira contra a sistemática da “monetização do risco”, ele é expresso ao defender que “Uma das formas de combate ao agente agressivo é o agravamento dos adicionais, de modo a levar o empregador a preferir a eliminação e/ou neutralização do agente ao pagamento dos adicionais.” OLIVEIRA, Sebastião G. Ibidem, p. 218. Não é outro o entendimento que leva o ilustre jurista mineiro a defender a cumulação de vários adicionais de insalubridade, caso o trabalhador esteja exposto, na mesma jornada, a mais de um agente insalubre.
[18] O art. 71 da Lei nº 8.112, de 11 de setembro de 1990 estabelece: “O adicional de atividade penosa será devido aos servidores em exercício em zonas de fronteira ou em localidades cujas condições de vida o justifiquem, nos termos, condições e limites fixados em regulamento.” Lei nº 8.112, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: http://www.presidencia.gov.br/CCIVIL/LEIS/L8112cons.htm. Acesso em: 20 fev. 2006. Já há decisões dos Tribunais Superiores no sentido de que tal definição não se aplica aos trabalhadores em geral.
[19] O Decreto nº 58.831, de 25 de março de 1964, relacionou e classificou as atividades penosas, indicando o tempo de trabalho mínimo para obtenção de aposentadoria especial. A Lei nº 3.807, de 26 de agosto de 1960, instituiu aposentadorias especiais para os trabalhos penosos, insalubres e perigosos. Daí a relevância da classificação contida no Decreto nº 58.831, de 25 de março de 1964, que a doutrina e a jurisprudência entendem, pacificamente, não transcender para fins além dos previdenciários.
[20] Segundo Sebastião G. Oliveira, “O trabalho insalubre é aquele que afeta ou causa danos à saúde, provocando doenças, ou seja, é o trabalho não salubre, não saudável. Muitas enfermidades estão diretamente relacionadas e outras são agravadas pela profissão do trabalhador ou as condições em que o serviço é prestado, o que possibilita a visualização do nexo causal entre trabalho e doença”. In: OLIVEIRA, Sebastião G. Ibidem, p. 139. Para Arnaldo Süssekind, “Em face do estatuído nos arts. 189 e 190 da CLT, há insalubridade, geradora do direito ao adicional de natureza salarial, quando o empregado sofre agressão de agentes físicos ou químicos acima dos níveis de tolerância fixados pelo Ministério do Trabalho, em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos (critério quantitativo); ou, ainda, de agentes biológicos relacionados pelo mesmo órgão (critério qualitativo)”. In: SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Constitucional do Trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 263.
[21] O “risco acentuado” é definido pela NR-16 da Portaria nº 3.214/78. O risco qualifica-se como probabilidade de que um dado perigo se materialize, causando um dano específico.
[22] Várias Portarias posteriores alteraram o conteúdo das Normas Regulamentadoras originais, instituídas pela Portaria 3.214/78.
[23] OLIVEIRA, Sebastião. Op. cit., p. 111
[24] VENDRAME, Antonio C. A Cumulatividade dos Adicionais. Revista CIPA. São Paulo, ano XVII, nº 214, p. 28.
[25] BUCK, Regina C. Cumulatividade dos Adicionais de Insalubridade e Periculosidade. São Paulo: LTr, 2001, p. 124.
[26] O Tribunal Superior do Trabalho já firmou jurisprudência no sentido de que a exposição do trabalhador a agente ou local periculosos, ainda que de forma intermitente, gera direito ao recebimento do adicional de periculosidade, excluindo tal direito, todavia, quando a exposição se der de forma eventual ou, sendo habitual, der-se por tempo extremamente reduzido (Súmula 364, I, do C. TST). No que concerne à exposição habitual por tempo reduzido, entende-se que demonstra um afastamento inexplicável dos juslaboralistas da noção de risco potencial envolvida na periculosidade, haja vista que o sinistro pode ocorrer a qualquer momento, inclusive naquele “extremamente reduzido” referido pela Súmula.
[27] Norma Regulamentadora nº 16, da Portaria nº 3.214/78.
[28] MARTINS, Sérgio P. Comentários a CLT. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000.
[29] Ver José Afonso da Silva acerca da concepção clássica de diferenciação entre eficácia e efetividade das normas jurídicas, em Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 2. ed. São Paulo: RT, 1982.
[30] SARLET, Ingo W. Op. cit., p. 233.
[31] OLIVEIRA, Sebastião G. Op. cit., p. 45.
[32] Não se desconhecem posições doutrinárias restritivas, no sentido de que o § 1º do art. 5º da Constituição Federal aplicar-se-ía tão-somente aos direitos individuais e coletivos encerrados no art. 5º da Carta Magna. Tal entendimento, todavia, vem sendo paulatinamente rechaçado pela doutrina e pela jurisprudência.
[33] Ingo W. Sarlet, em determinados casos defende a eficácia plena das normas, inclusive em se tratando de direitos fundamentais à prestações.
[34] Para perfeita compreensão da nova principiologia interpretativa das normas constitucionais ver Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, Op. cit., pp. 358-366.
[35] OLIVEIRA, Sebastião G. Op. cit., p. 47.
[36] SARLET, Ingo W. Op. cit., p. 369.
[37] Indispensável para boa compreensão da carga de eficácia das normas jurídicas constitucionais no mínimo a leitura de três autores: José Afonso da Silva, titular da concepção clássica de que as normas podem ser de eficácia plena, contida ou limitada; José Horácio Meirelles Teixeira, para quem todas as normas constitucionais possuem um mínimo de eficácia, a qual pode ser considerada de natureza gradual e em dois grupos (normas de eficácia plena e normas de eficácia limitada ou reduzida); Maria Helena Diniz, para quem as normas constitucionais podem apresentar eficácia absoluta ou plena, diferenciando-se as primeiras da segunda pelo fato daquelas serem insuscetíveis de alteração até mesmo por Emenda Constitucional, e, ainda, normas com eficácia relativa restringível e normas com eficácia relativa complementável ou dependente de complementação legislativa. Não há fôlego no presente trabalho para esmiuçar cada uma das classificações, mas a concepção das normas constitucionais a partir de sua força para gerar efeitos é fundamental para qualquer estudo que envolva a efetividade de direitos fundamentais.
[38] SARLET, Ingo W. Op. cit. pp. 261-262.
[39] Em pesquisa de jurisprudência feita nos sites oficiais dos Tribunais Regionais do Trabalho localizaram-se decisões isoladas, monocráticas (1º grau), concedendo ao trabalhador os adicionais de insalubridade e periculosidade, cumulativamente, nos Tribunais da 10ª e 3ª Região (Brasília e Minas Gerais, respectivamente), valendo destacar que nem todos os sites oficiais permitem a consulta a decisões dos juízes de primeiro grau.
[40] Lei nº 2.573, de 15.08.1955. Disponível em http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1955/2573.htm. Acesso em: 22 fev. 2006
[41] Diário do Congresso Nacional de 2 de novembro de 1977. Versão scaneada. CENTRAL DE ATENDIMENTO/ CEDI/Câmara dos Deputados. Solicitação da exposição de motivos da Lei nº 6.514, de 22.12.1977. [Mensagem institucional]. Mensagem recebida por <ninapoars@terra.com.br> em 20 fev. 2006.
[42] A Convenção nº 155 da OIT aborda Segurança e Saúde dos Trabalhadores e o Meio Ambiente de Trabalho. Foi aprovada pelo Decreto Legislativo nº 2, de 17 de março de 1992, e promulgada pelo Decreto nº 1.254, de 29 de setembro de 1994 (Diário Oficial da União de 30.09.94).
[43] SÜSSEKIND, Arnaldo. Convenções da OIT. São Paulo: LTr, 1994, p. 363.
[44] Essa idéia é também defendida por Sebastião Geraldo de Oliveira e Regina Celia Buck.
[45] Interessante, neste ponto, remeter o leitor as duas teorias clássicas concernentes à incorporação das normas internacionais na legislação nacional: a concepção monista, para a qual há interdependência entre a ordem jurídica internacional e a nacional, razão pela qual a ratificação de um Tratado por um Estado importa incorporação automática de suas normas à respectiva legislação interna; a concepção dualista, para a qual as ordens jurídicas internacional e nacional são independentes e não se misturam, pelo que a ratificação de um Tratado importa apenas no compromisso de legislar na conformidade do diploma ratificado, sob pena de responsabilidade do Estado na esfera internacional. No Brasil, prepondera a concepção monista, por força do disposto no § 2º do art. 5º da Constituição Federal, bem como pela disposição contida na alínea a do inciso III do art. 105 da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido já vinha se manifestando o Supremo Tribunal Federal, com esteio nas Constituições anteriores de 1946 e 1967. O status adotado pelas normas internacionais ratificadas pelo Brasil, a partir de sua incorporação no ordenamento jurídico nacional, também é outra questão por demais discutida. Todavia, a partir da introdução do § 3º ao art. 5º da Constituição Federal, pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, segundo o qual “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” parece que a questão restou resolvida, mormente a vingar o entendimento que vem se fortalecendo, no sentido de que a integração da norma internacional na forma prevista no § 3º do art. 5º não se trata da opção, mas de obrigatoriedade.
[46] SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Constitucional do Trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 89.
[47] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista. Processo nº TST-RR-668.361/2000.7. Jerson Pedro Rosa e outros e Rede Ferroviária Federal S.A. (em liquidação extrajudicial): Relator Juiz Convocado Luiz Antonio Lazarim. DJ de 22.03.2005. Disponível em: <http://www.tst.gov.br>. Acesso em: 17 jan. 2006.
[48] STRECK, Lenio L. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, pp. 455-456.
[49] REIS, Jorge R. A Concretização e a Efetivação dos Direitos Fundamentais no Direito Privado. In: LEAL, R. G.; REIS, J. R. (Org.). Direitos Sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004, p. 1003.
DOS ASPECTOS LEGAIS E CONSTITUCIONAIS DA ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL 279 DA SDI-I DO TST
Ricardo Tenório Cavalcante
Juiz do Trabalho do TRT 19ª R – AL
Diretor Acadêmico da Escola da Magistratura do Trabalho da 19ª R de Alagoas – EMATRA 19
Professor de Processo Civil nos Cursos de Pós-graduação do CEAP em convênio com a Faculdade Maurício de Nassau
Mestre em Direito pela UFPE
SUMÁRIO:
Considerações Iniciais
1. Do Contexto Hermenêutico da OJ.
2. O sentido da expressão “todas as parcelas salariais”.
3. A preocupação com o bis in idem.
4. A composição da base de cálculo: questão de direito que exige atuação de ofício do Órgão Judicial.
5. A necessária crítica a partir da Principiologia Constitucional.
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A OJ 279[1] veio para uniformizar o entendimento sobre a base de cálculo do adicional de periculosidade dos eletricitários.
O problema então colocado estava centrado em responder-se à indagação sobre se o adicional deveria incidir sobre o salário base apenas ou, como acabou prevalecendo, se o adicional deveria levar em conta todas as parcelas salariais. Essa controvérsia portanto foi superada com a edição da OJ.
Todavia, outras questões continuam a bater às portas do Judiciário em torno da mesma temática, embora com outros enfoques. Refiro-me ao alcance da expressão “sobre todas as parcelas salariais”, o que remete à velha mas sempre tormentosa querela em torno do que é salário, no caso para efeito de composição da base de cálculo; faço referência ainda a um ponto que demanda um especial cuidado, que é o de evitar a dupla condenação sob o mesmo título. E sem olvidar a delicada questão processual que a hipótese encerra: quando é possível ao juízo dizer quais as parcelas salariais e quais as parcelas não-salariais, o que envolve tanto o fato de a atuação ser de ofício ou provocada, como a questão da preclusão em torno do tema.
A importância do debate parece evidente quando mais não fosse porque a questão, na maioria dos casos, vem à baila em lides envolvendo empresas públicas, sendo certo que o interesse em jogo vai para além do meramente individual.
Pretendo assim examinar, num primeiro momento, o horizonte hermenêutico a que é desafiada a interpretação da OJ, lançando as premissas exegéticas para a melhor compreensão do texto. Em seguida, pretende-se enfrentar o problema do sentido da locução “todas as parcelas salarias”. Num terceiro tópico, darei especial atenção para a possibilidade de dupla condenação sob a mesma rubrica, que é um dos gargalos mais comuns no instante do cálculo do adicional de periculosidade.
Ao depois, e com vistas a enriquecer o debate, enfrentar-se-á a questão processual em torno da matéria, para dizer como se dá o exame judicial, mais especificamente se provocado ou por incoação estatal.
E ainda se fará uma ponderação crítica, ainda que em linhas de afloramento, sobre o texto da OJ à luz dos princípios constitucionais brasileiros.
1. DO CONTEXTO HERMENÊUTICO DA OJ
Não se pode deixar de levar em consideração o horizonte hermenêutico com que se defronta o operador do Direito nos casos albergados pela OJ em questão.
Um ponto de extremo relevo diz com a necessária filtragem hermenêutica de qualquer texto, mesmo uma súmula ou OJ. Todo e qualquer texto demanda interpretação.
E isso decorre de uma diferença ontológica entre texto e norma. São elucidativas as palavras de Humberto Ávila a esse respeito: “Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado”.[2]
No caso da OJ 279, fica claro que a expressão “todas as parcelas salariais” tem que ser interpretada, para daí extrair-se um sentido, de acordo com o ambiente jurídico em que se insere. É dizer, não se pode perder de vista que a OJ está participando de um sistema normativo e deve, por isso mesmo, ser interpretada a partir do conjunto de textos que o compõem.
Daí por que se fez consignar que a interpretação da OJ requer alguns cuidados, e não tem a literalidade que seu texto aparentemente quer lhe atribuir.
Noutras palavras: o sentido que advém do texto da OJ não pode ser tirado apenas dos termos nela descritos, mas a partir de uma filtragem hermenêutica que leve em conta o ordenamento jurídico nacional, mormente a CLT e a Carta da República de 1988.
2. O SENTIDO DA EXPRESSÃO “TODAS AS PARCELAS SALARIAIS”
O problema que emerge neste ponto diz respeito ao fato de saber-se até onde, em termos hermenêuticos, vai o alcance da expressão “todas as parcelas salariais” da OJ, vencida que ficou, em termos conceituais, a etapa em que a literalidade do texto dizia-lhe o sentido completo, como se o texto fosse algo apartado de todo o direito.
A resposta passa necessariamente por dizer-se o que se entende por salário no direito brasileiro.
É certo que o legislador celetista não enfrentou a definição de salário, tendo preferido declarar o que considerava compreendido no salário e na remuneração em vez de dizer o que são.
Dentro desse intuito analítico, a CLT distinguiu salário de remuneração a partir do critério da fonte do pagamento: aquilo que “é devido e pago, diretamente do empregador, como contraprestação do serviço” seria salário; o que é percebido pelo empregado de terceiro seria remuneração[3].
É de se atentar, contudo, que, para o propósito de se definir qual a composição da base de cálculo do adicional de periculosidade, a distinção entre remuneração e salário não segue draconianamente o critério diferenciador da fonte de pagamento. Isto porque, mesmo verbas pagas ao empregado por terceiro, o que seria remuneração dentro da clivagem terminológica da CLT, pode vir a integrar a conta desde que haja habitualidade no pagamento. A gorjeta é o melhor exemplo disso, a qual, a despeito de ser paga por terceiro, e em havendo habitualidade nesse adimplemento, considera-se configurado um ajuste tácito salarial para o empregado: o aporte a título de gorjeta fará integrará assim o cálculo de todas as verbas trabalhistas como se salário fosse.
É conclusiva a esse respeito a doutrina de Catharino, segundo a qual “se a oportunidade de ganho, a que se obrigou o empregador, é normal e contínua as gorjetas serão habituais e, portanto, presumidamente, salário” (fl. 559).
Salarial é assim termo que, para efeito da OJ, e na esteira de uma exegese sistemática a que todo texto demanda, quer significar o título assim expresso na CLT, ou o numerário sob outra rubrica qualquer mas que, uma vez percebido pelo empregado com habitualidade, adquire feição de ajuste tácito e passa a ostentar idêntico enquadramento legal.
Está-se pois autorizado a dizer que a expressão “todas as parcelas salariais”, estampada na OJ em destaque, deve ser compreendida como todas as verbas recebidas pelo empregado que sejam tidas expressamente pela lei como salário e aquelas que, contanto habituais, adquirem o mesmo contorno de salário por configuração de ajuste tácito nos termos do art. 442 da Consolidação.
Por mero consectário lógico, estão excluídas as parcelas recebidas pelo empregado apenas ocasionalmente, já que um evento isolado não tem o condão de caracterizar ajuste tácito.
De igual modo, também se excluem as parcelas previamente tidas pela lei sem caráter salarial, do que são exemplos as diárias para viagem e ajudas de custos que não excedam 50% do salário percebido pelo empregado (CLT, art. 457, § 2º).
E ainda deixam de integrar a base de cálculo as parcelas ilicitamente percebidas, na medida em que derivam de ato faltoso do empregado, ainda que a proibição decorra de previsão estritamente contratual[4].
Há ainda uma restrição na composição da base de cálculo do adicional de periculosidade que escapa do discrímen sobre a parcela ser ou não salarial. É uma restrição que diz com a vedação do bis in idem, e para chegar a bom termo com esse desiderato atinge qualquer título, seja qual for a sua natureza. Pela relevância e abrangência dessa limitação, será a questão enfrentada num tópico próprio, logo abaixo.
3. A PREOCUPAÇÃO COM O BIS IN IDEM
Como já consignei, um dos equívocos mais freqüentes no momento da feitura do cálculo do adicional de periculosidade, e de graves repercussões práticas, é a ocorrência de bis in idem.
É que a periculosidade integra a base de cálculo de algumas verbas trabalhistas, como é o caso das horas extras, logo não podem essas mesmíssimas verbas fazerem parte também da composição da base de cálculo do adicional de periculosidade. Sob pena de enriquecimento sem causa.
Explorar um pouco mais o exemplo das horas extras ajudará na compreensão da assertiva anterior. Suponha-se que as horas extras devidas foram corretamente calculadas, de acordo com o Enunciado 264 do C.TST e OJ nº 267 da SDI do C.TSP, o que significa dizer que se levou em consideração nessa conta o adicional de periculosidade. Se se utilizar a parcela de horas extras no cálculo do adicional incorrer-se-á no bis in idem.
É preciso atentar para o conceito legal e jurídico de cada título.
Sendo assim, o adicional de periculosidade incidirá sobre as verbas salariais que já não tenham em sua composição o mesmo adicional.
Trata-se de um raciocínio lógico-analítico, aliado a uma preocupação com o princípio do não-enriquecimento sem causa (pagamento indevido)[5], e se cuida igualmente de aplicação do postulado da razoabilidade, entendido este último como equidade[6].
4. A COMPOSIÇÃO DA BASE DE CÁLCULO: QUESTÃO DE DIREITO QUE EXIGE ATUAÇÃO DE OFÍCIO DO ÓRGÃO JUDICIAL
Penso que não há dúvidas de que se trata de questão[7] de direito. Toda a definição de parcela salarial é legal, do que decorre que não se trata de matéria probatória a exigir definição via instrução. Não há fatos a serem enfrentados. Todos os contornos são contornos previstos em lei.
Mesmo as parcelas que não estão expressamente descritas na consolidação como salário, têm a sua caracterização legal. Decorrem do enquadramento ou não do recebimento como ajuste expresso ou tácito (CLT, art. 442, caput).
Sob pena de se perpetrar uma iniqüidade, como seria o caso de se reconhecer como salário uma verba recebida ocasionalmente ou mesmo uma única vez pelo empregado, deve-se entender que o enquadramento judicial decorre dos deveres de boa-fé e de lealdade processuais, aos quais cumpre o órgão judicial zelar.
Assim é que se justifica, pois, a atuação de ofício, independentemente de provocação, para dizer qual o enquadramento legal de cada título recebido pelo empregado, para efeito de composição da base de cálculo do adicional de periculosidade.
Está-se a rigor diante de uma objeção, e não de uma exceção, o que significa dizer que toda a matéria aqui enfrentada efetivamente não depende de provocação da parte. Valho-me do escólio de Coqueijo Costa quando afirma que “as objeções independem de provocação, enquanto as exceções substanciais só podem ser conhecidas pelo Juiz se levantadas pelo réu. Pagamento, decadência e nulidade são objeções”[8]. Não pairam dúvidas de que a questão está no terreno do pagamento. Há pois objeção a ser enfrentada por incoação estatal, contra a qual evidentemente não se opera preclusão.
5. A NECESSÁRIA CRÍTICA A PARTIR DA PRINCIPIOLOGIA CONSTITUCIONAL
Duas linhas de idéia assomam quando se pretende fazer uma leitura da OJ a partir dos princípios da Carta Política de 1988: o direito à isonomia e o direito ao ambiente de trabalho hígido e sadio.
No que se refere à isonomia, deve ficar o registro de que nada justifica um tratamento diferenciado para os eletricitários em detrimento dos demais trabalhadores que se inserem em situação de perigo. O que significa dizer que o alargamento da base de cálculo do adicional de periculosidade deve ser defendido para todos, aí se valendo do mecanismo concretista da analogia e com supedâneo no princípio da isonomia.
Não é o caso, vale dizer, de inquinar-se de inconstitucional a OJ mas sim de aplicar-lhe interpretação extensiva para todo o conjunto de laboristas.
No que se refere ao direito ao meio ambiente de trabalho hígido, a crítica vai contra a monetarização dessa garantia constitucional, que se acha positivada no art. 6º da Carta da República. É que sempre deve o operador do direito tentar remover a situação de periculosidade, como de resto deflui da dicção do art. 191 da CLT, em vez de autorizar licitamente a sua permanência com o mero pagamento do adicional, monetarizando a saúde do trabalhador, portanto. O direito fundamental à saúde deve prevalecer[9], sempre que factível, em toda a sua integralidade, devendo pois o adicional ser pensado para a excepcionalidade dos casos, apenas e apenas quando não for possível a remoção da periculosidade do meio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A OJ 279 da SDI-I do TST demanda alguns cuidados hermenêuticos no seu manejo prático, como de resto sucede com todo e qualquer texto jurídico quando confrontado com a sistemática legal e constitucional.
É preciso assim bem analisar não apenas as verbas que integram a expressão da OJ “todas as parcelas salariais” como os títulos que de modo algum podem fazer parte desse conceito.
Especial previdência deve ser tomada para evitar a dupla condenação sob a mesma rubrica (bis in idem), sempre considerando na composição da base de cálculo se o adicional de periculosidade já está incluído na verba que se pretende computar no cálculo.
Deve ainda ser atentado para o aspecto processual da temática, não olvidando que se está diante de uma questão de direito e assim de uma objeção, que exige atuação de ofício do órgão jurisdicional.
Há que rememorar-se também que o pagamento do adicional de periculosidade é medida última, desde que verificada a impossibilidade fática de remover o ambiente perigoso, tudo com vistas à proteção do direito fundamental à saúde do trabalhador.
Deve-se ter presente que uma aplicação da OJ sem que sejam observados os parâmetros legais e constitucionais aqui referidos desafia recurso de revista, com supedâneo na alínea “a”, do art. 896 da Consolidação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2004.
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de Processo Civil, 3. ed., vol. I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996.
CATHARINO, José Martins. Tratado Jurídico do Salário. São Paulo: LTr, 1994.
COSTA, Coqueijo. Direito Processual do Trabalho. 4a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
COUTINHO, Aldacy Rachid. A Autonomia Privada: em busca da defesa dos direitos fundamentais dos trabalhadores. In Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, org. Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
GAGLIANO, Pablo Stolze & Pamplona Filho, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – Obrigações, 4a. ed., v. II. São Paulo: Editora Saraiva, 2004.
[1] Orientação Jurisprudencial 279 da SDI-I: “Adicional de Periculosidade. Eletricitários. Base de cálculo. Lei nº 7.369/85, art. 1o. Interpretação. O adicional de periculosidade dos eletricitários deverá ser calculado sobre o conjunto das parcelas de natureza salarial”.
[2] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2004, p. 22.
[3] A crítica de José Martins Catharino é aguda e precisa quanto à inadequação do critério utilizado pelo legislador: “o critério é original e prático, mas não se justifica. Não há razão jurídica, nem de linguagem, para se emprestar à palavra remuneração capacidade expressiva mais ampla que a que possui o vocábulo salário. Além disso, como veremos […] ao tratarmos da gorjetas, estas poderão ser ou não ser salário, quer resultem ou não de obrigação patronal.” CATHARINO, José Martins. Tratado Jurídico do Salário. São Paulo: LTr, 1994, p. 133.
[4] No mesmo sentido, e valendo-se do exemplo das gorjetas ilícitas, é o escólio de Catharino: “as gorjetas ilícitas não podem se tornar obrigatórias, e o empregado que as recebe comete falta passível de punição disciplinar ou até de rescisão justa do contrato por parte do empregador”. CATHARINO, José Martins. Tratado Jurídico do Salário. São Paulo: LTr, 1994, p. 559.
[5] O enriquecimento sem causa é gênero, do qual o pagamento indevido é apenas espécie. Tal concepção, com Rodolfo Pamplona e Pablo Stolze, foi albergada pelo Novo Código Civil brasileiro, no art. 884, in verbis: “Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários”. Cf. GAGLIANO, Pablo Stolze & Pamplona Filho, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – Obrigações, 4a. ed., v. II. São Paulo: Editora Saraiva, 2004, pp. 365-367.
[6] Participo aqui do entendimento de Humberto Ávila, tanto quando reconhece a razoabilidade como sinônimo de um juízo de equidade quanto quando a trata como postulado normativo aplicativo, e não um princípio como boa parcela da doutrina. Cf. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 44.
[7] Entenda-se questão como ponto controvertido, dentro da terminologia consagrada pela melhor doutrina
brasileira. Cf. BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A Curso de Processo Civil, 3. ed., vol. I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996, pp. 286-288.
[8] COSTA, Coqueijo. Direito Processual do Trabalho. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 282.
[9] È pertinente e ácida a esse respeito a crítica de Aldacy Rachid Coutinho, quando chama a atenção para o fato de que “o trabalho em local insalubre não é juridicamente relevante só enquanto um adicional legal de 40%, 20% ou 10% sobre o salário mínimo, mas especialmente como um possível e eventual dano à saúde – direito fundamental […]”. COUTINHO, Aldacy Rachid. A autonomia privada: em busca da defesa dos direitos fundamentais dos trabalhadores. In Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, org. Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 180. Idêntico raciocínio é utilizado no texto acima, para efeito de adicional de periculosidade.
O ALCANCE DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO NOS ACIDENTES DE TRABALHO – INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 114, VI, DA CF – BREVES NOTAS SOBRE A DENUNCIAÇÃO DA LIDE
Maurício Machado Marca
Juiz do Trabalho Substituto do TRT da 4ª R – RS
Mestrando em relações de trabalho na Universidade de Caxias do Sul-RS
SUMÁRIO:
Introdução
1. Espécies de ações acidentárias
2. Competência. Dano moral sofrido pelos familiares do acidentado
3. O posicionamento do Supremo Tribunal Federal
4. Denunciação da lide. Breves notas sobre a compatibilidade com o Processo do Trabalho
Conclusões
Bibliografia
INTRODUÇÃO
A alteração constitucional que resultou no acréscimo do inciso VI ao art. 114, da CF/88 e a decisão do Supremo Tribunal Federal no Conflito de Competência nº 7204-1/MG (29.06.2005) pacificaram a controvérsia relativa à competência da Justiça do Trabalho para julgar os processos de dano moral e material decorrente de acidente de trabalho. Logo após a decisão do STF no CC 7204/MG a Justiça Comum Estadual remete para a Justiça do Trabalho significativo número de processos de acidente de trabalho nos quais não havia sido proferida sentença de mérito[1].
Entre os diversos processos encaminhados pela Justiça Comum Estadual para a Justiça do Trabalho há acidentes de trabalho com morte nos quais os sucessores postulam indenização por dano moral sofrido pelo de cujus e normalmente de forma cumulada a indenização por dano moral sofrido em ricochete pelos próprios sucessores, assim como pensão mensal vitalícia para cobrir o dano material. Há possibilidade da ação de reparação ser dirigida também contra o empregado que participou com culpa para o evento danoso. Comumente os Juizes do Trabalho deparam-se ainda com denunciações da lide promovidas pelo empregador em face da seguradora e, eventualmente, desta em face do Instituto de Resseguros do Brasil.
Diante deste quadro a jurisprudência mostra-se dividida. Há decisões reconhecendo a competência da Justiça do Trabalho para os sucessores postularem a indenização por dano moral sofrido pelo de cujus[2], assim como o dano próprio dos sucessores[3].
Por outro lado, há decisões negando a competência da Justiça do Trabalho para julgar pedidos de indenização não só por dano moral, mas também por dano material, decorrentes de acidente de trabalho formulado pelos sucessores[4]. Em síntese são os seguintes os fundamentos: a) ausência de relação de emprego entre os autores e o empregador; b) matéria estritamente de direito civil; c) extinção do contrato de trabalho; d) não se tratar de direito oriundo do contrato de trabalho.
No que diz respeito à denunciação da lide limita-se a destacar pressuposto de constituição e desenvolvimento regular do processo quanto ao cabimento desta figura da intervenção de terceiros no processo do trabalho, anterior a analise da preliminar de competência material.
1. ESPÉCIES DE AÇÕES ACIDENTÁRIAS
O acidente de trabalho pode acarretar diversas conseqüências jurídicas: a) ação penal quando configurado fato típico penal como, por exemplo, um homicídio culposo (art. 121, § 3º, do CP); b) ação dos dependentes contra a Previdência Social para obtenção de pensão por morte (art. 18, II, a, c/c 74 e seguintes da Lei nº 8.213/91); c) ação da Previdência Social contra o empregador para obter direito de regresso quando afrontadas normas de segurança e higiene do trabalho (art. 120, Lei nº 8.213/91); d) ação de indenização fundada na responsabilidade civil (arts. 186 e 927 e seguintes do Código Civil).
As ações fundadas na responsabilidade civil podem ser divididas em três subespécies: a) as ações que postulam indenização pelo dano sofrido pelo próprio empregado; b) ações que postulam indenização sofrida pessoalmente pelos sucessores ou outras pessoas vinculadas à vítima do acidente de trabalho, no que se convencionou denominar dano em ricochete, indireto ou reflexo; c) ações movidas pela vítima ou pelo empregador contra o empregado que ao agir com culpa causou ou contribuiu para o acidente, nos precisos termos do art. 942, parágrafo único, do CC.
A ação penal seguramente não é atraída para a competência da Justiça do Trabalho na medida em que o art. 7º, inciso VI é de clareza meridiana ao se referir a “ações de indenização por dano moral ou patrimonial”. As ações nas quais o INSS é parte tem a competência disciplinada em razão da qualidade da pessoa litigante no art. 109, I, da CF/88. A jurisprudência atual é pacífica no sentido de manter as ações do INSS sob a competência da Justiça Comum Estadual. No presente estudo, analisam-se as ações fundadas na responsabilidade civil.
1.1. Dano do de Cujus e Dano em Ricochete
A diferenciação das subespécies de ações fundadas na responsabilidade civil do empregador deve levar em conta o direito de fundo alegado na petição inicial e não a qualidade das partes litigantes. Diferentemente do que sugere a 2ª Seção do STJ no CC 54210/RO e diversos outros julgados o simples fato do pólo ativo não estar ocupado por um espólio, mas pela pessoa natural dos sucessores, não é suficiente para concluir que não se trata de pedido que envolva direito próprio do empregado. Isso porque no processo do trabalho a representação processual do de cujus não se dá exclusivamente pelo espólio nos mesmos moldes do Código de Processo Civil (art. 12). A jurisprudência trabalhista é pacífica no sentido de que o art. 1º, da Lei nº 6.858/80 autoriza que os dependentes habilitados perante a Previdência Social postulem pessoalmente os créditos do empregado falecido, independentemente de inventário ou arrolamento de bens na forma da legislação civil.
É de fácil diferenciação o dano moral do empregado, cujo direito à indenização é transmitido aos sucessores, do dano moral sofrido pelo próprio sucessor na medida em que o dano moral é por natureza personalíssimo. Não só o empregado que perde a vida em acidente de trabalho sofre dano moral, como também sofre dano moral em ricochete o filho ou a esposa ao verem-se privados do convívio com a vítima.
O dano direto e o dano em ricochete estão vinculados por nexo de causa e efeito ao acidente de trabalho[5]. A obrigação de indenizar nas duas situações está adstrita
ao preenchimento dos requisitos gerais da responsabilidade civil. Em ambos é a antijuridicidade do mesmo ato que deve ser investigada para concluir-se pela existência ou não da obrigação de indenizar. A única diferença está em que no dano em ricochete o efeito do acidente não é direto, mas atinge primeiro a vítima e em conseqüência de atingir a vítima afronta também quem está com ela relacionado. A denominação ricochete diz tudo: “salto ou reflexo de um corpo ou de um projétil qualquer, depois do choque ou de tocar no chão” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).
O acidente de trabalho é a causa direta da redução ou incapacidade total para o trabalho da vítima. Contudo, os efeitos do acidente podem propagar-se em prejuízo para outras pessoas além da vítima caracterizando o dano em ricochete, também denominado reflexo ou indireto. Como exemplo de dano material, o acidente de trabalho pode ser a causa não só da incapacidade plena para o trabalho, mas também para os atos da vida em geral, como se vestir ou fazer a higiene pessoal, a exigir que pessoa da família abandone atividade remunerada para dedicar-se aos cuidados do acidentado. Nestas condições, além do prejuízo direto causado ao acidentado configura-se dano material em ricochete a pessoa do familiar. Exemplo de dano moral em ricochete em acidente sem morte é o do empregado recém casado e sem filhos que fica estéril pela exposição a produtos químicos no trabalho. A esposa do acidentado sofre dano moral pela quebra da previsível expectativa em ter filhos.
1.2. O empregado que morre no trabalho sofre dano?
Com todo o respeito aos entendimentos em contrário[6], no caso do acidente de trabalho com morte a indenização pelo dano material não é disciplinada pelo art. 948, do CC/02 ou pelo art. 1.537, do CC/16 que se destinam a estabelecer critérios de indenização para os casos de homicídio. A disciplina da indenização decorrente de acidente de trabalho, inclusive com morte, dá-se de modo específico e preciso no art. 950, do CC/02.
A indenização observa necessária e irrestrita correspondência com o dano (art. 944, do CC) pela aplicação do princípio consagrado em responsabilidade civil da restitutio in integrum. É exatamente por isso que o art. 950, do CC/02 estabelece que a indenização material decorrente do acidente de trabalho incluirá pensão “correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou”. O acidente de trabalho que reduz em 50% a capacidade de trabalho resulta em indenização equivalente a 50% da remuneração, assim como em remuneração integral o acidente que resulta em incapacidade total para o trabalho. O resultado mais grave que pode alcançar o acidente de trabalho – a morte do trabalhador – resulta em prejuízo material no mínimo equivalente à incapacidade total sem morte. A morte do trabalhador não pode ser eleita como critério a beneficiar o ofensor. Sob o aspecto exclusivamente patrimonial de auferir salários a morte equivale em tudo e por tudo à inabilitação plena para o trabalho.
O argumento de que o empregado ao morrer deixa de ser sujeito de direitos e, por esta razão, não sofre prejuízo próprio não prospera diante de norma fundante de que o direito à reparação nasce no exato momento em que violado o ordenamento jurídico (art. 189, do CC). O direito à indenização nasce no exato momento em que se dá a prática do ato ilícito. Nascido o direito à indenização transmite-se inexoravelmente aos herdeiros (art. 943, do CC/02). A transmissão da herança, considerada como um todo unitário (art. 1791, do CC), dá-se no exato momento em que aberta a sucessão, ou seja, quando ocorre o óbito (art. 1784, do CC). O morto não é sujeito de direitos, mas o empregado necessariamente assim deve ser considerado e estes direitos são transferidos aos seus herdeiros. Afronta a lógica e o direito o argumento de que ser humano que morre no trabalho não sofre prejuízo próprio.
A aplicação e interpretação do art. 948, do CC de modo a excluir o prejuízo do de cujus, transferindo-o exclusivamente as pessoas a quem o morto devia alimentos gera conseqüência absurda: o fato mais grave que é a morte do trabalhador pode acarretar indenização inferior ao menos grave que é a incapacidade total ou parcial para o trabalho sem morte. Basta que o empregado não tenha dependente. Não parece razoável que a norma jurídica deixe sem nenhuma tutela o empregado que morre no trabalho por culpa do empregador pelo simples fato de que não tem dependente.
Caso a vítima tenha dependentes a indenização afasta-se do princípio da restitutio in integrum (art. 944, do CC) para desaguar em infindáveis hipóteses: a) existência ou não de remuneração própria dos dependentes; b) idade dos dependentes; c) devida ou não aos pais e em caso afirmativo até quando e em que valor. Todas as hipóteses reduzindo a repercussão do dano efetivamente causado pelo ofensor. O fator morte não pode ser eleito como critério transcendental a excluir o prejuízo próprio da pessoa que é a vítima direta do acidente.
A extensão do dano afere-se objetivamente pela riqueza que deixou de ser gerada em razão do infortúnio e não subjetivamente levando em conta a condição pessoal de cada um dos dependentes ou herdeiros do de cujus. Caso contrário, haveria franca contradição com reiteradas decisões de que o benefício previdenciário não se compensa com a indenização fundada na responsabilidade civil (art. 121, Lei nº 8.213/91).
No que diz respeito ao dano moral convém ressaltar que é um flagrante equívoco discutir-se a transmissibilidade desta espécie de dano aos sucessores. O dano moral identificado com a dor e o sofrimento da vítima é ínsito à personalidade humana e fatalmente perece junto com a vítima. Contudo, não é o dano moral que se transmite aos sucessores, mas a respectiva retribuição pecuniária pelo prejuízo sofrido pela vítima, nos mesmos moldes em que se transmite a indenização patrimonial. O direito à indenização pecuniária nasce objetivamente com a violação do ordenamento jurídico: a prática do ato ilícito[7].
2. COMPETÊNCIA – Dano moral sofrido pelos familiares do acidentado
O art. 114 da CF/88, com a redação anterior à Emenda Constitucional 45/2004, delimitava a competência da Justiça do Trabalho nos seguintes termos: “Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores (…)”. A rigor a dicção da norma constitucional reserva à Justiça do Trabalho desde a promulgação em 5 de outubro de 1988 a competência para julgar as ações decorrentes de acidente de trabalho movidas pelo empregado contra o empregador. Entre outros fundamentos, pela simples razão de que somente é acidente de trabalho o que ocorre entre empregado e empregador. Nada mais evidente para estabelecer a competência da Justiça do Trabalho nos casos de acidente de trabalho que a supressão da exceção contida no § 2o do art. 142 da CF/67.[8]
O Supremo Tribunal Federal no julgamento do Conflito de Competência nº 7204-01/MG afirma categoricamente: a competência para julgar pedido de indenização por acidente de trabalho do empregado contra o empregador não foi introduzida pela EC 45/2004, mas era desde 5.10.1988 da Justiça do Trabalho[9].
Diante de tais constatações indaga-se: será que nada mudou com a edição da Em enda Constitucional nº 45/2004? A lei e, com muito maior razão, a Constituição Federal, não contém expressões inúteis. Não é possível deixar de atribuir significado à atual redação dos incisos I e VI da Constituição Federal, inseridos pela Emenda Constitucional 45/2004.[10]
A competência da Justiça do Trabalho foi alterada e significativamente ampliada. Não por fruto do acaso, mas de tendência que remonta à origem da Constituição Federal em 5.10.1988, que estabeleceu sensível incremento estrutural à Justiça do Trabalho com a previsão de pelo menos um Tribunal Regional do Trabalho em cada estado e no Distrito Federal (art. 112), passando pela Lei nº 10.770 de 21.11.2003 que criou 269 Varas do Trabalho em todo o território nacional.
A alteração imposta pela Emenda Constitucional nº 45/2004 é efetivamente de paradigma. Com base na redação anterior da norma constitucional era corrente a afirmação de que a competência da Justiça do Trabalho era delimitada em razão da qualidade das pessoas litigantes[11]. A partir da Emenda Constitucional nº 45/2004 tornou-se irrelevante a qualidade dos litigantes. A competência não é mais definida em razão da pessoa, mas da matéria. A força inercial causada pelo hábito arraigado dos operadores jurídicos da Justiça do Trabalho de enxergar sempre e invariavelmente o empregado e o empregador nos pólos ativo e passivo das ações, eximindo-se de julgar sempre que isso não ocorre, precisa necessariamente ser rompida. Não há tarefa mais árdua que modificar o modo de pensar dos operadores jurídicos, resistente até mesmo a alterações na Constituição Federal.
A competência da Justiça do Trabalho passou a delimitar-se pela matéria, repita-se que independentemente da qualidade dos litigantes. São as matérias pertinentes à relação de trabalho e os danos morais e patrimoniais oriundos desta relação os critérios eleitos na Constituição para delimitar a competência da Justiça do Trabalho. Entre os diversos danos que em tese podem estar vinculados à relação de trabalho por liame de causa e efeito seguramente o mais relevante é o que atinge a integridade física do trabalhador.
O acidente de trabalho necessariamente nascido na relação de trabalho pode causar danos que se estendem para além do prestador do trabalho e atingem as pessoas que convivem com o empregado, como seus familiares. Nem por isso o dano deixou de ser “decorrente da relação de trabalho”. Em outras palavras: o relevante não é perquirir se a vítima detém ou não a qualidade de empregado, se está ou não vinculada por relação contratual ao empregador, mas investigar se o dano alegado na petição inicial guarda relação de causa e efeito com o acidente de trabalho e, por corolário lógico imediato, com a relação de trabalho.
É esta a única interpretação que confere efeito e significação jurídica à reforma introduzida pela Emenda Constitucional nº 45/2004 ao acrescentar os incisos I e VI no art. 114 da Constituição Federal.
A distribuição de competência não é aleatória ou fortuita, desvinculada de razão e sentido. As competências são delimitadas levando em conta especialmente a afinidade da matéria com o respectivo ramo do judiciário escolhido e a necessidade de manutenção de coerência lógica visando evitar tanto quanto possível a contradição de decisões calcadas no mesmo fato. O Supremo Tribunal Federal ao reconhecer que é a Justiça do Trabalho a habilitada para decidir sobre a observância das normas de segurança, higiene e saúde dos trabalhadores (Súmula 736), assim como para dirimir os litígios decorrentes de acidente de trabalho (CC 7204-01/MG), atrai para esta Justiça todas as “ações de indenização” decorrentes do acidente.
É a reunião em um único ramo do Poder Judiciário das controvérsias fundadas no mesmo fato que permite a aplicação das regras previstas na norma processual destinadas a evitar a contradição de julgamentos (arts. 102 e 103 do CPC). A unidade de convicção que serviu de fundamento para o voto do Min. Cezar Peluso no AI 527.105/SP[12] é de extrema relevância para concluir-se pela competência da Justiça do Trabalho, in verbis:
“É que, na segunda hipótese, em que se excepciona a competência da Justiça do Trabalho, as causas se fundam num mesmo fato ou fatos considerados do ponto de vista histórico, como suporte das qualificações normativas diversas e pretensões distintas. Mas o reconhecimento dessas qualificações jurídicas, ainda que classificadas em ramos normativos diferentes, deve ser dado por um mesmo órgão jurisdicional. Isto é, aquele que julga o fato ou fatos qualificados como acidente ou doença do trabalho deve ter competência para, apreciando-os, qualificá-los, ou não, ainda como ilícito aquiliano típico, para que não haja risco de estimas contraditórias.” (grifo nosso)
À Justiça do Trabalho compete pacificamente decidir se no acidente de trabalho estão presentes os requisitos que geram a obrigação de indenizar o dano principal – sofrido pelo empregado – estabelecendo a existência de nexo de causa, culpa ou dolo e o prejuízo e sua extensão. É um total despropósito remeter para outro ramo do Poder Judiciário a averiguação exatamente da presença dos mesmos requisitos em relação a idêntico ato para verificação dos danos em ricochete ou reflexos. O dano moral em ricochete está umbilicalmente vinculado por relação direta de causa e efeito com o ato ilícito do ofensor. A competência da Justiça do Trabalho em circunstâncias que tais não resultará no conhecimento de controvérsia não íntima e diretamente adstrita ao acidente de trabalho.
Bastam regras ordinárias de bom senso para concluir que a mesma petição inicial que descreve os fatos que geraram o acidente, a existência do nexo de causa postule o dano sofrido pelo próprio empregado e os respectivos danos em ricochete, ao invés de exigir-se a impressão de nova via de idêntico teor distribuindo-a a Juízos diferentes, com flagrante possibilidade de decisões contraditórias.
A prevalecer o entendimento de que compete a distintos ramos do Poder Judiciário o julgamento do dano direto e do dano em ricochete do acidente de trabalho é possível antever fundadas controvérsias acerca do Juízo competente dada a tênue distinção entre as duas figuras, com desperdício de energia para decidir qual Juízo julgará o mérito e sérios prejuízos para o jurisdicionado a quem interessa única e tão-somente a entrega da prestação jurisdicional de mérito e o restabelecimento da ordem jurídica.
É perfeita a comparação do Juiz Reginaldo Melhado com a única complementação que no caso ora tratado o especialista seria em dano em ricochete e surpreendentemente poderia chegar à conclusão de que a cirurgia não era necessária, verbis:
“É como se um cardiologista fosse chamado a diagnosticar o doente e identificasse uma doença grave, concluindo pela necessidade do transplante cardíaco. Esse médico inicia então a cirurgia. Abre o tórax do paciente e faz o afastamento do esterno. Separa a rede de veias e artérias e liga a circulação sanguínea extracorpórea. Arrancando o órgão enfermo, instala o novo coração. Mas, no momento de religar as artérias e veias, o procedimento é interrompido. O cirurgião é incompetente e o paciente deve procurar um outro médico: o especialista em nexo de causalidade”[13].
A 1a Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, promovida em conjunto pelo C. Tribunal Superior do Trabalho por meio da ENAMAT e pela Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho, debruçou-se sobre o presente tema na comissão V ligada ao acidente de trabalho e doença ocupacional. Da análise de duas propostas contrárias emergiu o Enunciado nº 36 aprovado em plenária:
ACIDENTE DO TRABALHO – COMPETÊNCIA – AÇÃO AJUIZADA POR HERDEIRO, DEPENDENTE OU SUCESSOR – Compete à Justiça do Trabalho apreciar e julgar ação de indenização por acidente de trabalho, mesmo quando ajuizada pelo herdeiro, dependente ou sucessor, inclusive em relação aos danos em ricochete.[14]
A Constituição Federal ao estabelecer o direito dos trabalhadores a seguro contra acidentes de trabalho sem excluir a indenização quando o empregador incorrer em dolo ou culpa torna clara a preocupação em disciplinar questão social de alta relevância. São conhecidas as estatísticas da Organização Internacional do Trabalho de que a cada minuto três trabalhadores morrem no mundo como resultado de condições inseguras de trabalho. A atração da competência para dirimir os litígios decorrentes dos acidentes de trabalho para a Justiça do Trabalho é a garantia de eficácia da norma material constante no art. 7o, XXVIII da CF/88.
A interpretação das normas constitucionais deve buscar conferir o máximo de eficácia aos seus preceitos, notadamente em se tratando de direitos sociais. Por isso, repugna ao sistema constitucional qualquer interpretação que restrinja os efeitos do acréscimo de competência da Justiça do Trabalho promovido pela Emenda Constitucional nº 45/2004[15].
Neste sentido a regra processual de distribuição da competência deve ser interpretada em estrita consonância com a estatura e relevância constitucional e social o direito material controvertido, sempre voltado a conferir a mais célere e, por isso, eficaz proteção ao bem da vida pretendido pela parte[16]. Dada às características próprias da Justiça do Trabalho, a distribuição da competência é de significativa relevância para a concretização do direito constitucional previsto no art. 7o, XXVIII.
O Processo do Trabalho desde sua origem é marcado por nítido caráter inquisitivo (art. 765, da CLT) e pelos princípios da celeridade e oralidade. A prática demonstra que o Processo do Trabalho assegura a parte significativo ganho em eficácia na prestação juridicional comparativamente ao processo ordinário previsto no Código de Processo Civil, ao qual se submetem as causas de acidente de trabalho na Justiça Comum Estadual.
Não é razoável eleger o fator morte, conseqüência mais grave do acidente de trabalho, como excludente da competência da Justiça do Trabalho como fatalmente ocorrerá em prevalecendo o entendimento de que o empregado falecido não sofre dano próprio e que os danos em ricochete, moral e patrimonial, não se inserem na competência da Justiça do Trabalho.
O argumento fundado na matéria estritamente civil do dano em ricochete está superado desde a decisão do Supremo Tribunal Federal no Conflito de Jurisdição nº 6.959-6, publicado em 22.02.1991, relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence[17]. Ademais, não há diferença entre os principais dispositivos legais que disciplinam o dano principal e em ricochete.
3. O POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Há decisões do Supremo Tribunal Federal favoráveis a competência da Justiça do Trabalho, independentemente do autor da ação ser o empregado ou seu sucessor. O Supremo Tribunal Federal ainda não decidiu especificamente a questão que envolve o dano em ricochete, mas ao que consta das decisões proferidas efetivamente permite a conclusão de que foram transferidas para a Justiça do Trabalho todas as ações de indenização decorrentes do acidente de trabalho previstas no art. 7o, inc. XXVIII, da CF/88. A decisão proferida no AgR 503.043-1-SP, da lavra do Ex.mo Min. Carlos Britto[18], adota por fundamento que “a causa do pedido de indenização continua sendo o acidente sofrido pelo trabalhador”. A decisão proferida no ED-RE 509.353-1-SP, da lavra do Ex.mo Min. Sepúlveda Pertence[19], afirma categoricamente que “Irrelevante para a questão da competência que se cuide de ação proposta por viúvo de empregada das embargantes”. Portanto, por coerência lógica e jurídica deve ser da Justiça do Trabalho a competência para dirimir pedido de dano moral ou material em ricochete cuja causa de pedir é o acidente de trabalho, embora não figure no pólo ativo a pessoa do empregado, mas normalmente seus sucessores.
4. DENUNCIAÇÃO DA LIDE – BREVES NOTAS SOBRE A COMPATIBILIDADE COM O PROCESSO DO TRABALHO
O Tribunal Superior do Trabalho cancelou a OJ 227 da SDI-1 que de plano afastava a possibilidade de cabimento da denunciação da lide no Processo do Trabalho por esbarrar sempre na necessidade de julgamento de controvérsia que escaparia à competência da Justiça do Trabalho[20]. O Tribunal Superior do Trabalho ao cancelar a Orientação Jurisprudencial nº 277 da SBDI-1 limitou-se a apresentar dois fundamentos: a) acréscimo de competência; b) princípios da economia e celeridade processuais. O TST não enfrentou no cancelamento da OJ 277, o cabimento ou não da denunciação da lide em situações específicas, como a denunciação do empregador em relação à seguradora nos acidentes de trabalho. Após o cancelamento da OJ 277 o Tribunal Superior do Trabalho sinalizou claramente no acórdão proferido no Recurso de Revista nº 1944/2001-018-09-40 o critério a ser utilizado caso a caso para aceitar ou não a denunciação da lide[21].
A denunciação da lide está prevista no art. 70 do CPC como uma das modalidades de intervenção de terceiros cabíveis no processo civil. A invocação subsidiária das normas processuais civis está subordinada no processo do trabalho às condições do art. 769 da CLT: a) existência de omissão; b) compatibilidade com as normas e princípios próprios do processo do trabalho. Omissão efetivamente existe no processo trabalho relativamente à intervenção de terceiros.
Contudo, somente a omissão não basta. Deve-se indagar: há compatibilidade entre a norma processual civil e o processo do trabalho? A resposta pauta-se necessariamente pelo correto e justo critério proposto pelo Tribunal Superior do Trabalho: o interesse do trabalhador no rápido desfecho da causa. O silêncio da CLT relativamente à intervenção de terceiros é deliberado. Destina-se a evitar a subordinação da lide principal de interesse do trabalhador à lide secundária normalmente de interesse do empregador. O exercício e a concretização do direito controvertido na lide principal não pode ficar ao sabor da solução de controvérsia acessória, quando esta for irrelevante para o autor.
Para esta conclusão sequer é necessário invocar-se os princípios da celeridade e efetividade que marcam o processo do trabalho, tampouco a impregnação ao processo do princípio protetor inerente ao direito material do trabalho em função da característica instrumental do processo. No processo civil, que parte da premissa de igualdade das partes, o Superior Tribunal de Justiça conta com farta jurisprudência restringindo o cabimento da denunciação da lide com o fundamento declarado de que a intervenção de terceiros não pode gerar obstáculo à concretização do direito alegado na petição inicial, contrariando os princípios da economia e celeridade processuais que a justificam. No processo civil comum ordinário não se admite a denunciação da lide quando possa prejudicar demasiadamente uma das partes.[22]
Nem se argumente com a expressão “obrigatória” constante no caput do art. 70 do CPC na medida em que a melhor doutrina e a jurisprudência dominante concluem que somente há efetiva obrigatoriedade de denunciação no caso do inciso I, por força do art. 456 do CC. Em se tratando de possibilidade de ação regressiva prevista no inciso III a denunciação somente é obrigatória caso o réu pretenda estender os efeitos da sentença ao denunciado. Caso não seja alegada a denunciação não obstaculiza posterior ação regressiva[23].
No processo civil as técnicas que objetivam conferir maior celeridade processual obstam expressamente a possibilidade de intervenção de terceiros. É o caso do procedimento sumário (art. 280 do CPC) e as ações envolvendo direito do consumidor (art. 88 do CDC). As regras e princípios próprios do Processo do Trabalho estão muito mais afinados com o processo sumário e com o que envolve o consumidor do que com o processo ordinário de cognição plena e exauriente. Vale dizer, a compatibilidade do processo do trabalho a que alude o art. 769 da CLT dá-se precisamente com o art. 280 do CPC e com o art. 88 do CDC que vedam a intervenção de terceiros.
O Processo do Trabalho, ao funcionar como instrumento de garantia do recebimento de créditos de natureza alimentar superprivilegiados, não pode ceder ao princípio da celeridade em relação ao crédito alimentar, em benefício de crédito quirografário de interesse do empregador em face da seguradora, salvo nos casos em que a participação desta seja indispensável para assegurar a utilidade do provimento final.
Na primeira jornada de Direito Material e Processual do Trabalho promovida pelo TST/ENAMAT em conjunto com a ANAMATRA, a comissão V referente ao Processo do Trabalho, após profícuo debate[24], elaborou Enunciado nº 68 aprovado em plenária:
I. Admissibilidade da intervenção de terceiros nos Processos submetidos à jurisdição da Justiça do Trabalho. II. Nos processos que envolvem crédito de natureza privilegiada, a compatibilidade da intervenção de terceiros está subordinada ao interesse do autor, delimitado pela utilidade do provimento final. III. Admitida a denunciação da lide, é possível à decisão judicial estabelecer a condenação do denunciado como co-responsável.
CONCLUSÕES
A competência da Justiça do Trabalho passou com a EC 45/2004 a ser delimitada em razão da matéria e não mais da pessoa. Os danos moral e patrimonial vinculados umbilicalmente por relação de causa e efeito ao acidente de trabalho são da competência da Justiça do Trabalho. A competência da Justiça do Trabalho abrange o dano sofrido pelo empregado e em ricochete por aquelas pessoas que o cercam. A morte do trabalhador não é critério previsto em lei para afastar a competência da Justiça do Trabalho. A compatibilidade da denunciação da lide com o Processo do Trabalho está subordinada ao interesse do autor, delimitado pela utilidade do provimento final.
BIBLIOGRAFIA
FILHO, Sérgio Cavalieri, in Programa de Responsabilidade Civil, 6. ed, Malheiros, São Paulo: 2005.
GIGLIO, Wagner, in Direito Processual do Trabalho, 10. ed, Saraira, São Paulo: 1997.
GRIJALBO, Fernandes Coutinho e FAVA, Marcos Neves, coordenadores, in Justiça do Trabalho: Competência Ampliada, LTr, São Paulo: 2005.
CANOTILHO, J.J. Gomes, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2. ed, Livraria Almedina, Coimbra, 1998.
MARINONI, Luiz Guilherme, in Técnica Processual e Tutela de Direitos, Revista dos Tribunais, São Paulo: 2004.
VALE, Vander Zambeli, in Revista LTr, nº 8, volume 60, São Paulo: agosto/96.
NERY JR, Nelson, in Código de Processo Civil Comentado, 7. ed, Revista dos Tribunais, São Paulo: 2003.
QUINTAS, Fábio Lima, in Revista do Tribunal Superior do Trabalho, vol. 71, nº 3, set/dez, Brasília: 2005.
OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de, in Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional. São Paulo: LTr, 2005.
FERNANDES, Rogério Donizete, in Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 9a Região, nº 35, em excelente artigo no mesmo sentido cuja leitura se recomenda.
[1] AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO – CONSTITUCIONAL – COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E PATRIMONIAIS, DECORRENTES DE ACIDENTE DO TRABALHO – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESPECIAL – AÇÕES EM TRÂMITE NA JUSTIÇA COMUM DOS ESTADOS ANTES DA EC Nº 45/04 – PRORROGAÇÃO DA COMPETÊNCIA, SE JÁ APRECIADO O MÉRITO DO PEDIDO – DIREITO ADQUIRIDO PROCESSUAL – Compete à Justiça do trabalho apreciar e julgar pedido de indenização por danos morais e patrimoniais, decorrentes de acidente do trabalho, nos termos da redação originária do art. 114 c/c inciso I do art. 109 da Lei Maior. As ações em trâmite na Justiça comum estadual e com sentença de mérito anterior à promulgação da EC 45/04 lá continuam até o trânsito em julgado e correspondente execução. Quanto àquelas cujo mérito ainda não fora apreciado, devem ser remetidas à Justiça laboral, no estado em que se encontram, com total aproveitamento dos atos já praticados. “Consideram-se de interesse público as disposições atinentes à competência em lides contenciosas; por este motivo, aplicam-se imediatamente; atingem as ações em curso. Excetuam-se os casos de haver pelo menos uma sentença concernente ao mérito; o veredictum firma o direito do Autor no sentido de prosseguir perante a Justiça que tomara, de início, conhecimento da causa” (Carlos Maximiliano). Precedente plenário: CC 7.204. Outros precedentes: RE 461.925-AgR, RE 485.636-AgR, RE 486.966-AgR, RE 502.342-AgR, RE 450.504-AgR, RE 466.696-AgR e RE 495.095-AgR. Agravo regimental desprovido.” (Ag. R 504374/SP, 1ª T, Rel. Min. Carlos Brito, publicado no DJ 11.05.2007).
[2] “INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAL E MORAL – ACIDENTE DE TRABALHO COM ÓBITO AÇÃO MOVIDA PELOS SUCESSORES – COMPETÊNCIA MATERIAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO – I. É incontroversa a competência da Justiça do Trabalho para julgar ação de indenização por danos moral e material provenientes de infortúnio do trabalho quando movida pelo empregado. II. A competência material assim consolidada não sofre alteração na hipótese de, falecendo o empregado, o direito de ação for exercido pelos seus sucessores. III. Com efeito, a transferência dos direitos sucessórios deve-se à norma do art. 1784 do Código Civil de 2002, a partir da qual os sucessores passam a deter legitimidade para a propositura da ação, em razão da transmissibilidade do direito à indenização, por não se tratar de direito personalíssimo do de cujus, dada a sua natureza patrimonial, mantida inalterada a competência material do Judiciário do Trabalho, em virtude de ela remontar ao acidente de que fora vítima o ex-empregado. Recurso desprovido” (TST, RR nº 165/2006-076-03-00, Rel. Min. Barros Levenhagen, publicado no DJ de 27.04.2007).
“ACIDENTE DO TRABALHO – MORTE DO EMPREGADO – INDENIZAÇÃO DE DANO MORAL E PATRIMONIAL VINDICADO PELA VIÚVA – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO – Os danos decorrentes de acidente de trabalho, inclusive a pretensão de dano moral e material vindicado pela viúva, se inserem na órbita de competência desta Justiça Especializada. Recurso provido.” (RO 00534-2006-811-04-00-7, Rel. Juiz Pedro Luiz Serafini, publicado em 12.02.2007).
“PROCESSUAL CIVIL – CONFLITO DE COMPETÊNCIA – INDENIZAÇÃO POR ACIDENTE DO TRABALHO – SERVIDOR PÚBLICO – ARTIGOS 109 E 114 DA CF – 1. O Supremo Tribunal Federal no julgamento do Conflito de Competência 7.204/MG entendeu que, mesmo antes de ser editada a Emenda Constitucional 45/2004, a competência para julgar as ações que versem sobre indenização por dano moral ou material decorrente de acidente de trabalho já seria da Justiça Laboral. (…). 4. Tem natureza trabalhista a reclamatória intentada pelos herdeiros do trabalhador falecido e em nome dele com o fito de ver reconhecida a indenização por danos morais e materiais ocasionadas por acidente de trabalho. (…) 6. Conflito de competência conhecido para declarar a competência do Juízo da 2ª Vara do Trabalho de Americana-SP, o suscitado.” (Conflito de Competência nº 61.587, SP, Superior Tribunal de Justiça, Rel. Min. Carlos Meira, publicado em 11.09.2006 – grifo itálico nosso).
[3] “MORTE DO EMPREGADO – INDENIZAÇÃO POR ACIDENTE DO TRABALHO – AÇÃO MOVIDA PELA MÃE, ÚNICA HERDEIRA DO ‘DE CUJUS’ – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO – Em razão da morte do empregado, o exame e o julgamento dos danos sofridos por sua mãe, única herdeira necessária e dele dependente financeiramente, inserem-se na competência da Justiça do Trabalho, haja vista que o acidente que ceifou a vida do trabalhador ocorreu no âmbito de uma relação de trabalho, a teor do art. 114, VI, da CF/88.” (RO 00010-2006-131-03-00-9, Rel.ª Desemb.ª Denise Alves Horta, 8ª T, TRT-MG, publicado em 14.04.2007).
“AÇÃO DE INDENIZAÇÃO DE DANOS MORAIS E MATERIAIS DECORRENTES DE ACIDENTE DE TRABALHO – LEGITIMIDADE ATIVA DO VIÚVO DA EX-EMPREGADA DA RECLAMADA – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO – Ante a alegação da recorrente de que somente o espólio da ex-empregada pleitear judicialmente indenização por danos morais e materiais decorrentes de acidente de trabalho e de que o autor não pode ser considerado sucessor, é necessário salientar que o autor não age por representação ou sucessão; ao contrário postula direitos em nome próprio. Daí sua legitimidade ativa. Quanto aos limites da competência da Justiça do Trabalho, a questão encontra-se superada, em face da decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça que, ao julgar conflito negativo de competência suscitado nesta demanda, reconheceu a competência da Justiça do Trabalho” (RO 00941-2005-101-03-00-4, Rel.ª Juíza Taisa Maria M. de Lima, 7ª T, TRT-MG, publicado em 25.01.2007).
[4] “CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – ACIDENTE DO TRABALHO – Entendimento no sentido de que não compete à Justiça do Trabalho o exame do recurso ordinário interposto pela cônjuge de trabalhador falecido, visto que extinto o contrato de trabalho, a indenização requerida tem regras insculpidas no Direito Cível, tal como reconhecido Décima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no processo nº 70013505706, em agravo de instrumento julgado em 16 de março de 2006. Declara-se a nulidade da sentença e de todos os atos praticados por esta Justiça Especializada e suscita-se conflito negativo de competência, determinando-se a remessa dos autos ao Ex.mo Ministro Presidente do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, na forma do que dispõe o art. 105, inciso I, alínea d, da Constituição Federal.” (RO 00809-2005-241-04-00-4, Rel.ª Juíza Tânia Maciel de Souza, 5ª T. TRT-RS, publicado em 24.10.2006).
“AÇÃO RESCISÓRIA – PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS DECORRENTES DE ACIDENTE DE TRABALHO – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO – Decisão rescindenda em que, após a declaração de incompetência do Juízo Cível para julgar a ação de indenização, a Vara do Trabalho da comarca de Rio Verde – GO condenou a reclamada a pagar à esposa e à filha do empregado falecido indenização por danos morais e materiais decorrentes de acidente de trabalho que levou aquele a óbito. Ação rescisória ajuizada com fundamento no art. 485, II, do CPC. Constatação de que as autoras do processo originário formularam dupla pretensão de indenização, a saber: um, por um dano material, por meio do qual se pretendeu a condenação da Ré ao pagamento do seguro de vida obrigatório previsto no art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal; e outro por dano moral, resultante da dor e sofrimento causado às autoras pela morte de seu pai e marido. Competência da Justiça do Trabalho quanto à primeira pretensão, haja vista que a obrigação de contratar seguros contra acidente de trabalho pressupõe a existência de um contrato de trabalho ou relação de emprego. No que respeita ao segundo pedido, não detém esta Justiça Especial competência para aprecia-lo, na medida em que as Autoras invocam como causa de pedir a dor sofrida pelo falecimento do empregado. O alegado trauma emocional guarda relação com perda do ente querido, ou seja, o que se invoca é o sofrimento próprio das Autoras, e, não, qualquer direito sonegado pertencente ao de cujus. Recurso ordinário a que se dá provimento parcial, a fim de julgar parcialmente procedente a pretensão desconstitutiva, tendo em vista a incompetência da Justiça do Trabalho para apreciar pedido de dano moral, feito em nome próprio pelas Autoras. Determinação de remessa dos autos ao MM. Juízo Cível, para que aprecie a pretensão de indenização decorrente de danos morais, como entender de direito” (ROAR 307/2003-000-18-00.3, TST – Rel. Ex.mo Min. Gelson de Azevedo, publicado em 26.05.2006)
“CONFLITO DE COMPETÊNCIA – ACIDENTE DE TRABALHO – MORTE DO EMPREGADO – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO PROPOSTA PELA ESPOSA E PELO FILHO DO FALECIDO – 1. Compete à Justiça Comum processar e julgar ação de indenização proposta pela mulher e pelo filho de trabalhador que morre em decorrência de acidente do trabalho. É que, neste caso, a demanda tem natureza exclusivamente civil, e não há direitos pleiteados pelo trabalhador ou, tampouco, por pessoas na condição de herdeiros ou sucessores destes direitos. Os autores postulam direitos próprios, ausente a relação de trabalho entre estes e o réu. 2. Conflito conhecido para declarar a competência da Justiça Comum” (CC 54210/RO, STJ, 2ª Seção, publicado em 12.12.2005, decisão por maioria cinco votos contra quatro).
[5] “somente o dano reflexo certo e que tenha sido conseqüência direta e imediata da conduta ilícita pode ser
objeto de reparação, ficando afastado aquele que se coloca como conseqüência remota, como mera perda de uma chance” (Sérgio Cavalieri Filho, in Programa de Responsabilidade Civil, 6. ed., São Paulo: Malheiros, p. 125).
[6] O autor ressalta que o arbitramento da indenização por dano material no caso de acidente de trabalho com morte com fundamento no art. 950, do CC é, ao menos por ora, minoritário na doutrina e jurisprudência.
[7] “A corrente que sustenta a intransmissibilidade do dano moral parte, data vênia, de uma premissa equivocada. Na realidade, não é o dano moral que se transmite, mas sim a correspondente indenização. O ponto de partida para uma correta visão do problema é o que segue. Uma coisa é o dano moral sofrido pela vítima, e outra coisa é o direito à indenização, daí resultante. O dano moral, que sempre decorre de uma agressão a bens integrantes da personalidade (honra, imagem, bom nome, dignidade, etc), só a vítima pode sofrer, e enquanto viva, porque a personalidade, não há dúvida, extingue-se com a morte. Mas o que se extingue – repita-se – é a personalidade e não o dano consumado, nem o direito à indenização. Perpetrado o dano (moral ou material, não importa) contra a vítima quando ainda viva, o direito à indenização correspondente não se extingue com sua morte. E assim é porque a obrigação de indenizar o dano moral nasce no mesmo momento em que nasce a obrigação de indenizar o dano patrimonial – no momento em que o agente inicia a prática do ato ilícito e o bem juridicamente tutelado sofre a lesão. Neste aspecto não há distinção alguma entre o dano moral e patrimonial. Nesse mesmo momento, também, o correlativo direito à indenização, que tem natureza patrimonial, passa a integrar o patrimônio da vítima e, assim, se transmite aos herdeiros titulares da indenização” (Sérgio Cavalieri Filho in, Programa de Responsabilidade Civil, 6. ed, Malheiros, São Paulo, 2005, p. 112 – grifo nosso).
[8] “Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores e, mediante lei, outras controvérsias oriundas de relação de trabalho. (…) § 2º Os litígios relativos a acidentes do trabalho são da competência da Justiça ordinária dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, salvo exceções estabelecidas na Lei Orgânica da Magistratura Nacional”
A este respeito leia-se o excelente artigo do Juiz do Trabalho Vander Zambeli Vale publicado na Revista LTr – Legislação do Trabalho nº 8, volume 60, agosto/96, p. 1.069.
[9] “Com efeito, estabelecia o caput do art. 114, em sua redação anterior, que era da Justiça do Trabalho a competência para conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, além de outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho. Ora, um acidente de trabalho é fato ínsito à interação trabalhador/empregador. A causa e seu efeito. Porque sem o vínculo trabalhista o infortúnio não se configuraria; ou seja, o acidente só é acidente de trabalho se ocorre no próprio âmago da relação laboral.(…)
Nesse rumo de idéias, renove-se a proposição de que a nova redação do art. 114 da Lex Maxima só veio aclarar, expletivamente, a interpretação aqui perfilhada. Pois a Justiça do Trabalho, que já era competente para conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, além de outras controvérsias decorrentes da relação trabalhista, agora é confirmativamente competente para processar e julgar as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho (inciso VI do art. 114)” (grifos nossos)
[10] Art. 114. “Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; (…) VI – as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho;”
[11] GIGLIO, Wagner. Direito Processual do Trabalho, 10. ed, Saraiva, 1997, p. 45.
[12] Decisão monocrática. Publicada no DJ de 22.05.2005, p. 65
[13] in, Justiça do Trabalho: Competência Ampliada, São Paulo: LTr, 2005, p. 413.
[14] O autor apresentou a proposta de enunciado com síntese dos fundamentos constantes no presente artigo. Contudo, para a aprovação da proposta foi fundamental a defesa do Ex.mo Juiz do TRT 3ª R, Sebastião Geraldo de Oliveira, cuja obra Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional. São Paulo: LTr, 2005, é de leitura indispensável. O enunciado está disponível no sítio www.anamatra.org.br/jornada.
[15] “Este princípio também designado por princípio da eficiência ou princípio da interpretação efectiva, pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais)” (JJ Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2. ed, Livraria Almedina, Coimbra, 1998, p. 1097 – grifo no original)
[16] “há que entender que o cidadão não tem simples direito à técnica processual evidenciada na lei, mas sim direito a um comportamento judicial que seja capaz de conformar a regra processual com as necessidades do direito material e dos casos concretos. É óbvio, não se pretende dizer que o juiz deve pensar o processo civil segundo seus próprios critérios. O que se deseja evidenciar é que o juiz tem o dever de interpretar a legislação processual à luz dos valores da Constituição Federal. Como esse dever gera o de pensar o procedimento em conformidade com as necessidades do direito material e da realidade social, é imprescindível ao juiz compreender as tutelas devidas ao direito material e perceber as diversas necessidades da vida das pessoas” (Luiz Guilherme Marinoni in, Técnica Processual e Tutela dos Direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 244 – grifo nosso).
[17] “EMENTA: 2. À determinação da competência da Justiça do Trabalho não importa que dependa a solução da lide de questões de direito civil, mas sim, no caso, que a promessa de contratar, cujo alegado conteúdo é o fundamento do pedido, tenha sido feita em razão da relação de emprego, inserindo-se no contrato de trabalho. (…) Para saber se a lide decorre da relação de trabalho não tenho como decisivo, data venia, que a sua composição judicial penda ou não de solução de temas jurídicos de direito comum, e não, especificamente, de direito do trabalho.” (grifo nosso – in, JSTF, 147, pp. 53/69).
[18] “AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO – CONSTITUCIONAL – COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA – INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E PATRIMONIAIS DECORRENTES DE ACIDENTE DE TRABALHO – AÇÃO AJUIZADA OU ASSUMIDA PELOS DEPENDENTES DO TRABALHADOR FALECIDO – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESPECIAL – Compete à Justiça do Trabalho apreciar e julgar pedido de indenização por danos morais e patrimoniais, decorrentes de acidente de trabalho, nos termos da redação originária do art. 114 c/c inciso I, do art. 109, da Lei Maior. Precedente: CC 7.204. Competência que remanesce ainda quando a ação é ajuizada ou assumida pelos dependentes do trabalhador falecido, pois a causa do pedido de indenização continua sendo o acidente sofrido pelo trabalhador. Agravo regimental desprovido.” (Rel. Ex.mo Min. Carlos Ayres Britto, Agravo Regimental em Recurso Extraordinário nº 503.043-1-SP, publicado no DJ de 1º.06.2007).
[19] “I. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO CONVERTIDOS EM AGRAVO REGIMENTAL – II. COMPETÊNCIA – JUSTIÇA DO TRABALHO – Ação de indenização por danos resultantes de acidente do trabalho, proposta contra o empregador perante a Justiça estadual, que pendia de julgamento de mérito quando do advento da Emenda Constitucional 45/2004. 1. Ao julgar o CC 7.204, 29.06.2005, Britto, inf. STF 394, o Supremo Tribunal Federal, revendo o entendimento anterior, assentou a competência da Justiça do Trabalho para julgar as ações de indenização por danos, morais ou materiais, decorrentes de acidente de trabalho, ajuizadas após a EC 45/04. 2. A nova orientação alcança os processos em trâmite pela Justiça comum estadual, desde que pendentes de julgamento de mérito (v.g. AI 506.325-AgR, 23.05.2006, 1ª T, Peluso; e RE 461.925-AgR, 04.04.2006, 2ª T, Celso), o que ocorre na espécie. 3. Irrelevante para a questão da competência que se cuide de ação proposta por viúvo de empregada das embargantes, falecida em decorrência de acidente de trabalho: trata-se de direito patrimonial, que, com a morte do trabalhador, se transmitiu aos sucessores” (Rel. Ex.mo Min. Sepúlveda Pertence, ED-RE 509.353-1-SP, publicado no DJ de 25.06.2007).
[20] Eis a justificativa da Comissão de Jurisprudência do TST: “o art. 114, inciso I, da Constituição Federal de 1988, com redação que lhe foi outorgada pela Ementa Constitucional nº 45/2004, passou a atribuir à Justiça do Trabalho competência para processar e julgar: ‘as ações oriundas da relação de trabalho’. Desapareceu, pois, a vinculação estrita e clássica da competência material da Justiça do Trabalho à lide exclusivamente entre ‘trabalhadores e empregadores’. Logo, a rigor, não há mais sustentação legal para se descartar de plano a compatibilidade da denunciação da lide com o processo do trabalho. De resto, é um instituto que prestigia os princípios da economia e celeridade processuais, de que é tão cioso o processo do trabalho, ao ensejar que, num único processo, obtenha-se a solução integral da lide” (in Revista do TST, Brasília, vol. 71, nº 3, set/dez 2005 – grifos nossos)
[21] “RECURSO DE REVISTA – PROCESSO DO TRABALHO – DENUNCIAÇÃO DA LIDE – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO – POSSIBILIDADE – REQUISITOS – Com o advento da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, que elasteceu a competência da Justiça do Trabalho é possível, a princípio, o instituto da denunciação da lide no processo do trabalho, cabendo a análise de sua pertinência caso-a-caso. Todavia, doutrina e jurisprudência mostram cautela ao admiti-la, já que, para tanto, devem ser considerados os interesses do trabalhador, notadamente no rápido desfecho da causa, haja vista a natureza alimentar do crédito trabalhista, bem como a própria competência da Justiça do Trabalho para apreciar a controvérsia que surgirá entre denunciante e denunciado.” (grifo nosso – Rel. Ex.mo Min. Horácio Senna Pires, publicado no DJ de 28.04.2006).
[22] “A denunciação da lide só é obrigatória em relação ao denunciante que, não denunciando, perderá o direito de regresso, mas não está obrigado o julgador a processa-la, se concluir que a tramitação de duas ações em uma só onerará em demasia uma das partes, ferindo os princípios de economia e da celeridade na prestação jurisdicional” (Grifo nosso – Rel.ª Min.ª Eliana Calmon, REsp. 313.886, publicado no DJ de 22.03.2004).
“A denunciação da lide, como modalidade de intervenção de terceiros, busca atender aos princípios da economia e da presteza na entrega da prestação jurisdicional, não devendo ser prestigiada quando susceptível de por em risco tais princípios” (grifo nosso – Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, REsp 43367-SP, publicado no DJ de 24.06.1996).
[23] “Nada obstante a letra da lei, a denunciação somente é obrigatória no caso do CPC 70 I, sendo facultativa nos demais. (…) Como o direito material é omisso quanto à forma e modo de obter indenização, relativamente às demais hipóteses de denunciação não se pode admitir que a não denunciação, nos casos do CPC II e III, acarretaria a perda da pretensão material de regresso. Norma restritiva de direito interpreta-se de forma estrita, não comportando ampliação. O desatendimento de ônus processual somente pode ensejar preclusão ou nulidade do ato, razão pela qual a falta de denunciação nas hipóteses do CPC II e III não traz como conseqüência a perda do direito material de indenização, mas apenas impede que esse direito seja exercido no mesmo processo onde deveria ter ocorrido a denunciação” (Nelson Nery Jr – in, Código de Processo Civil Comentado, 7. ed., RT, 2003, pp. 435 e 436).
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPEICAL – AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS CONTRA A UNIÃO – DENUNCIAÇÃO DA LIDE – NÃO-OBRIGATORIEDADE – INSTAURAÇÃO DE NOVA RELAÇÃO PROCESSUAL – AÇÃO REGRESSIVA ASSEGURADA – ARTIGO 70, III, CPC – (…) 3. Merece ser confirmado o aresto recorrido que indeferiu a denunciação à lide da empresa referida. Não sendo hipótese de obrigatória denunciação da lide para assegurar o direito de regresso, atenta contra o princípio da celeridade processual admitir no feito a instauração de outra relação processual que verse fundamento diverso da relação originária, a demandar ampliação da dilação probatória, onerando a parte autora. Recurso especial não provido.” (Min. José Delgado, Primeira Turma, publicada no DJ de 31.08.2006, p. 262 – grifo nosso).”
[24] A Ex.ma Juíza Sandra Mara de Oliveira Dias encaminhou proposta pela aceitação ampla da denunciação da lide no Processo do Trabalho com fundamento no aumento da competência material (EC 45/04). O autor encaminhou proposta relativamente ao cabimento restrito da denunciação da lide nos processos envolvendo acidente de trabalho. A mesa sob a precisa direção de Luciano Athayde Chaves, com valorosa contribuição dos convidados Julio Bebber e Sérgio Torres Teixeira, elaborou redação final de enunciado na opinião do autor melhor que as duas propostas originais.