Corajosa para todas as lutas
Com a participação mais do que especial da presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, juíza Noemia Porto, a AMATRA IV conclui a sua série de entrevistas referentes ao mês da mulher.
Entrevista “mulheres no poder”
Qual o papel do ensino na sua ascensão profissional?
O acesso ao ensino formal, e a dedicação a ele, sempre incentivada pelos meus pais, foi o único caminho, e o mais prazeroso, para trilhar a trajetória escolhida de ter uma profissão, ser economicamente independente, poder me dedicar a ela e ter autonomia para fazê-lo. Sem estudo ou conhecimento, desconfio que o meu destino estaria marcado pela dependência, com todas as implicações patriarcais daí advindas.
O concurso público foi uma forma de buscar igualdade de gênero no mundo profissional ou isso foi irrelevante na sua decisão?
A questão de gênero foi impulsionadora da escolha pela magistratura trabalhista. Num certo momento, tive a clareza de perceber que, fosse estagiando em escritório de advocacia, ou auxiliando professor na faculdade ou, ainda, atuando como assistente/assessora em gabinete de desembargador, eu escrevia, refletia e produzia para homens diferentes. Todos eles referências profissionais relevantíssimas e inspiradoras. Mas, o fato é que estava na hora de estudar, investigar, escrever e assinar o meu próprio nome, com todos os ônus e bônus presentes na responsabilidade que vem com essa autonomia.
Quais os três principais desafios enfrentados na construção de ser uma mulher expoente em sua área profissional?
Conviver com colegas, homens e mulheres, que adotavam discurso e prática profissionais que negavam as dificuldades maiores para as mulheres nas carreiras jurídicas. Ser promovida por merecimento para outro estado da federação e administrar, a mais de mil quilômetros de distância, a carreira profissional e as exigências da família que escolhi construir. Submeter-me a processos seletivos na academia encarando eventuais questionamentos sobre a minha capacidade de me dedicar à pesquisa diante da minha condição de mãe de quatro filhos e, a certa altura, divorciada.
Acredita que houve evolução na questão de gênero desde o início de sua trajetória profissional? No geral, observa que as mulheres no mercado de trabalho caminham hoje por uma estrada com menos obstáculos?
No âmbito do Judiciário Trabalhista, o avanço que percebo é que, embora as discriminações ainda existam, a equidade de gênero se tornou um tema; há debate sobre isso. Acredito que a visibilidade dessa pauta seja um passo importantíssimo para que mudanças reais possam ocorrer. As mulheres no mercado de trabalho enfrentam, em 2021, dificuldades que imaginávamos superadas nos últimos 30 anos, dentre elas o recuo na ocupação de postos de trabalho, conforme dados recentes do IBGE. Portanto, como em toda luta pelos direitos humanos, não há uma trajetória evolutiva ascendente. Toda conquista é resultado de luta, e sujeita a eventuais retrocessos. Além disso, não vejo nenhum debate público sobre alternativas ou soluções para reestruturar o mercado de trabalho levando em consideração que as mulheres, e as mulheres negras quanto mais, sofrerem duramente os efeitos da pandemia.
Em sua análise, qual a saída para termos mais igualdade de gênero num país que ainda lida com a desigualdade salarial entre homens e mulheres (na casa dos 30% a menos para elas) como se fosse algo satisfatório e normal?
O início de alguma mudança pode estar na exigência, e na prática, da representatividade em todos os âmbitos, sejam públicos ou privados. A presença igualitária das mulheres deve ser considerada como patamar ético em todas as relações. Olhando para os Poderes Constituídos, para os centros irradiadores de decisões que são importantes para o conjunto da sociedade, essa verdadeira representatividade não se faz presente. Além dela, é urgente discutir aspectos para a implementação de uma licença parental, à semelhança de outros países, como modo de colocar em evidência a necessidade de que os atributos do cuidado, que são uma importante dimensão da vida, sejam visibilizados e compartilhados com responsabilidade.
No Dia internacional da Mulher desse 2021, qual seria a sua mensagem a para a menina Noemia?
Noemia, você se sentirá muitas vezes sozinha nesta trajetória, mas será no encontro das mulheres e de mulheres, do passado (ancestralidade), do presente (especialmente na academia e na magistratura) e do futuro (suas filhas e sobrinha) que se sentirá corajosa para todas as lutas.
Foto: Anamatra